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Abbas Kiarostami deixa o legado de uma obra rica em formas e conteúdos

Quando houve a grande retrospectiva de Abbas Kiarostami no Centro Cultural Banco do Brasil, em abril, o repórter tentou entrevistar o diretor iraniano. Surgiram informações preocupantes. Abbas estaria internado, em estado grave, num hospital da França. Com insistência, as notícias foram se aclarando. Abbas esteve, realmente, internado na França, mas fora transferido para o Irã. A família chegou a criar, nas redes sociais, um mecanismo de busca para manter informados aqueles que, em todo o mundo, se preocupavam com a saúde do diretor.

Nessa segunda, 4, -, os piores presságios se confirmaram. Abbas, que havia sido diagnosticado com câncer gastrointestinal, morreu num hospital de Paris, para onde voltara para prosseguir tratamento. A agência iraniana de notícias informou que, no mês passado, ele passou por uma série de cirurgias. Tudo foi feito para salvar sua vida (e minorar o sofrimento). Não deu. O câncer espalhara-se, virara metástase. Leon Cakoff, o sr. Mostra de São Paulo, que também já morreu, gostava de dizer que seu evento foi o primeiro a projetar o cinema iraniano, e autores como Abbas e Mohsen Makhmalbaf. Abbas integrou o primeiro júri da Mostra, a de número 18, em 1994. No ano seguinte, criou o cartaz da 19.º. Regressou em 2004 (28ª Mostra) e em 2012 (36.ª Mostra). Todos os seus filmes, a partir de Onde Fica a Casa do Meu Amigo, de 1987, passaram aqui. Os anteriores (Viajante, de 1974, o experimental Cores, de 76, O Relatório, 77) foram recuperados em sucessivas homenagens e retrospectivas.

Abbas criou fama como experimentador – de formas e tecnologias. Definia seus filmes como incompletos – dizia que eram semi-filmes. Atribuía ao espectador a função de psicanalista. Cabia ao público, em sua poltrona, como no divã do psicanalista, completar o trabalho em seu imaginário. “Nenhum filme digno do nome se completa sem a participação (criativa?) do espectador”, refletia. Abbas recebeu importantes prêmios internacionais – a Palma de Ouro em Cannes por Gosto de Cereja, o prêmio da crítica em Veneza, por O Vento nos Levará, e a Medalha de Ouro Fellini, da Unesco, pelo conjunto da obra – e por exaltar valores liberdade, paz e tolerância em seus filmes. Tinha 76 anos. Usava seu prestígio para se engajar em causas importantes. Em 2010, em Cannes, fez um apaixonado apelo à libertação de Jafar Panahi, que havia sido preso em Teerã e, inclusive, impedido de realizar (mas ele burlou a vigilância e conseguiu não apenas filmar como enviar suas obras para festivais como Berlim e Cannes). Só para lembrar, foi baseado num roteiro de Abbas Kiarostami que Panahi fez Balão Branco, um de seus filmes mais belos.

O cineasta que agora desaparece nasceu em Teerã, em 22 de junho de 1940. Formou-se em artes plásticas e, aos 20 anos, começou a trabalhar como desenhista e ilustrador (de livros). Durante o reinado do Xá Mohammed Reza Pahlevi, foi convidado para criar o Departamento de Cinema do Instituto de Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Adolescentes, Kanoon. Foi a base do moderno cinema iraniano. Em 1979, a Revolução Islâmica derrubou a monarquia e instituiu uma nova era, inclusive para o cinema. Autores como Abbas e Makhmalbaf se haviam inspirado no neorrealismo italiano para fazer um cinema de baixo orçamento e elevada ambição estética. Sob a dominação dos aiatolás, continuaram fazendo filmes sobre crianças, filtrando, através da pureza do olhar infantil, a dura crítica social que nunca deixaram de fazer.

Lição de Casa, Vida e Nada Mais, Através das Oliveiras. Os êxitos de Abbas sucediam-se. Em meados dos anos 1990, foi convidado a fazer, na França, um dos episódios de A Propos de Nice – La Suite. E, logo, Lumière e Cia., outro episódio. Na sequência da Palma de Ouro (por Gosto de Cereja), tornou-se, mais que nunca, um autor experimental. Fez Dez, em dez planos-sequências, usando tecnologia digital. Radicalizou e fez Cinco. Em busca de liberdade, e também de recursos, passou a filmar fora do Irã. Fez Cópia Fiel, na Itália, e Um Alguém Apaixonado, no Japão. Cópia Fiel, com Juliette Binoche, é um de seus filmes mais expressivos – e complexos. Aparentemente, discute a questão da cópia na obra de arte. Juliette, que tem uma galeria de arte, se envolve com um especialista que vem debater a questão do direito autoral. A evolução da narrativa mostra que podem ser casados. E se o espectador avança um pouco na interpretação do semi-filme, a verdade é que cópia significa casal em italiano. A fidelidade não é só artística. Refere-se ao próprio casamento. Assim era Abbas, um grande autor.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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