Variedades

Adriana L. Dutra e Walter Carvalho assinam documentário intrigante

Santo Tomás de Aquino dizia que o tempo pertence a Deus e, portanto, qualquer tentativa de lucrar com o tempo implica roubar a Deus. No sistema escravocrata, alguém, o senhor de escravos, possui 100% do tempo do outro. A raiz de trabalho vem de uma palavra romana que designa um instrumento de tortura. O trabalho é dor, sofrimento. No capitalismo, você vende/aluga seu trabalho por horas da semana, do mês, do ano. E, nesse admirável mundo novo das redes sociais, se você fica muito tempo conectado, bem, você está produzindo de graça conteúdos com os quais alguém (os operadores/proprietários das tais redes) estará lucrando. Todo mundo se beneficia com as redes sociais, mas só esses caras, os Steve Jobs, ficaram bilionários.

São questões – exceto a última – embutidas em Quanto Tempo o Tempo Tem?, documentário de Adriana L. Dutra que estreou nessa quinta, 31, nos cinemas. Em São Paulo, o lançamento é limitado – em apenas alguns horários do Arteplex Itaú.
Nessa quinta, depois de assistir ao filme, o repórter conversou pelo telefone com a diretora, no Rio. Ela estava feliz da vida – “Estou aqui num cinema vendo o nascimento do meu rebento, e embora a sala não esteja lotada tem bastante gente.” Foram quatro anos, quase cinco, até chegar a esse momento. Tão logo se decidiu pelo projeto, Adriana conta que escreveu, do próprio punho, um bilhete e o deixou na casa do grande Walter Carvalho, convidando-o para ser seu diretor de fotografia. Carvalho respondeu imediatamente – “Que loucura é essa? É claro que topo.”

A parceria evoluiu para uma codireção. “O carinho do Walter foi muito importante. Ele assinou as imagens talvez mais belas do cinema brasileiro nas últimas décadas. E é um cara incrivelmente generoso. Foi um privilégio tê-lo a bordo comigo.” Mas Walter precisou sair para dirigir outro filme. Permaneceu ligado conceitualmente e Bacco Andrade assumiu a fotografia, “meu querido Bacco”, como diz a diretora. Quanto Tempo o Tempo Tem? integra uma trilogia de Adriana que começou com Fumando Espero, de 2009. “Dei-lhe o nome de trilogia da catarse. São três documentários que me transformam em cobaia de mim mesma. Fumando Espero é sobre minha dependência da nicotina. Quanto Tempo…? é sobre essa correria que a gente vive, fazendo as coisas para ontem, sem tempo para nada. Sociedade do Medo, para o qual estou captando, será o fecho, sobre as grandes corporações que mandam no mundo e formatam nossos desejos.”

Adriana lembra-se perfeitamente do começo do projeto, lá atrás. Ela foi a Brasília encontrar-se com uma autoridade – não diz o nome – para discutir patrocínio de festivais. Tomou um voo de manhã cedo e, ao entrar no escritório, depois de uma longa espera, pegou a tal autoridade no pulo. “Ele me olhou com uma cara de quem estava acuado. Tinha o telefone regular numa mão, o celular pendurado no ombro e com a outra mão segurava o mouse. Não conseguia nem falar comigo. Fez o gesto para que me sentasse. Quando falamos, disse-lhe que entendia perfeitamente o que estava ocorrendo e que ia fazer um filme sobre isso.”
André Comte-Sponville, Marcelo Gleiser, Thierry Paquot, Arnaldo Jabor, Francis Wolff, Luiz Alberto Oliveira, Raymond Kurzweil, Erick Felinto, Stevens Rehen, Domenico De Masi, Nélida Piñon e a monja Coen Sensei são algumas das personalidades que dão testemunhos no filme. São artistas, pensadores, filósofos, cientistas. Debatem questões transcendentes. O homem moderno possui uma expectativa de vida superior à de seus avós e bisavós. Vivemos hoje em média 30 anos mais. O que estamos fazendo com esse tempo extra? Para alguns, ele não basta e existem os transumanos, que sonham com a imortalidade e propõem experimentos que, no limite, poderão criar o homem-máquina. Diante desse mundo novo com o qual só podemos sonhar – a inteligência artificial -, a monja propõe o que talvez seja um recuo. O que nos caracteriza como humanos é a finitude, a certeza da morte. Sem essa certeza, não há graça. A morte faz parte da corrente da vida, e ela sorri, em paz consigo mesma. Enquanto isso, corremos – sempre, sem motivo, por nada. Quanto tempo o tempo tem? Os créditos começam, mas o filme não terminou. Domenico De Masi tem a última palavra. Vale refletir sobre o que diz.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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