Em 1975, Agnès Varda fez um documentário curto, Réponses des Femmes – Notre Corps, Notre Sex, e nele há uma entrevistada que diz que a sociedade não permite que as mulheres envelheçam. A própria Varda dizia que há uma expectativa por mulheres lindas, loiras, magras. Algumas são, a maioria, não. É injusto, como era injusto ficarem lhe dando prêmios e mais prêmios, só por haver chegado aos 90 anos. “Existem mulheres cineastas que admiro muito e não ganham nada”, dizia. Quase como uma reação a Women Reply ela fez uma de suas obras de arte, Potatotopia. Batatas fora da terra, da água. Ela adorava ver suas batatas envelhecerem. “Batatas não sofrem”, refletia.
Varda foi homenageada em fevereiro com um Urso de Ouro de carreira. Mostrou na Berlinale seu novo filme, que agora virou o último – Varda par Agnès. Teria sido, de qualquer maneira, o opus final. Varda queria se dedicar a suas instalações.
Morreu na sexta-feira, 29, em Paris. Câncer de mama. Numa coletiva, num desses grandes festivais – Cannes ou Berlim -, explicou o segredo de sua longevidade.
Faria 91 anos em maio. Nos anos 1960, foi à China. Adquiriu um costume local – toda manhã, em jejum, tomava um copo de água quente. Deu certo para ela, viveu mais 50 anos. Deixa o legado de uma obra importante. Fotógrafa, montadora. Foi precursora da nouvelle vague. Gostava de filmar personagens nas margens. Ela própria era uma diretora, uma autora à margem. “Nunca fiz filmes de ação, de ficção científica. Nunca tive muito dinheiro para fazer meus filmes, nunca contei histórias complicadas. Minha ambição sempre foi modesta. O que eu gosto é de filmar pessoas, para mostrar o que cada uma tem de raro, de especial. Algo belo, interessante.”
Em 65 anos de carreira, Varda recebeu muitos reconhecimentos, mas nada se compara ao Oscar. Bastou ser indicada no ano passado para o prêmio – por Visages, Villages, que codirigiu com JR – que virou pop. Já era, com seu cabelo multicolorido. Perdeu a estatueta, mas a Academia lhe outorgou outra, um Oscar especial. Recebeu a Carrosse dOr em Cannes, o Urso de Ouro de carreira. Sempre foi a maior crítica do próprio trabalho. “Penso muito no que faço, mas não em termos de filmes bons ou ruins. O que eu tento é entender e aprofundar meu processo de criação.” Nos anos 1950 e 60, Varda fez um nome como diretora de curtas como O Saisons, O Chateaux, Du Coté de la Côte. E longas – La Pointe Courte, Cléo das 5 às 7, As Duas Faces da Felicidade. Seu ideal – compartilhar emoções, sensações, impressões. “Tento ser espontânea, sigo meu instinto”, dizia. “Nunca pensei no cinema em termos de mensagem, sobre o que queria dizer. Fazia, dizia. Meus filmes são aventuras mentais que faço para entender, e aceitar, o outro.”
Filmes intimistas como Cléo e Le Bonheur, políticos como Salut les Cubains e Panteras Negras. Mesmo nesses registros, Cuba após a revolução de Fidel Castro, o poder negro – Eldridge Cleaver, Angela Davis -, as pessoas a atraíam. As inovações de linguagem, as estruturas narrativas, as ousadias de montagem eram a melhor maneira de servir a esses/essas personagens. Cléo, que espera o resultado de um exame que vai dizer se tem câncer, experimenta chapéus para comprar, desce uma escada (e Varda estende o tempo, à maneiras de Sergei M. Eisenstein, repete o plano várias vezes – por quê?), toma o táxi (e ouve notícias da Guerra da Argélia), canta em seu estúdio. Jean-Claude Drouaut, em Le Bonheur, identifica a felicidade no ato de ter duas mulheres, mas fracassa. Algumas vezes a própria Varda fracassou – As Criaturas e Duas Mulheres, Dois Destinos não foram aceitos pelo público nem pelos críticos. Mas foi uma bela vida, uma grande carreira
Em Berlim, ela disse que fez Varda par Agnès porque estava cansada de dar master classes. “Quando me pedirem alguma, mando o filme.” Ela se debruça sobre sua vida e obra. Filma-se no século 20 e no 21. “No 20, era cineasta; agora sou uma artista.” Tinha planos de se dedicar às instalações, e no filme antecipa a que estava fazendo. Terá continuidade? Era feminista de carteirinha, mas nos últimos 20 anos foi a suma sacerdotisa do culto ao marido, o homem que amou, Jacques Demy, que era soropositivo e morreu em 2000. Era criticada por isso. Importantes feministas a viam como uma espécie de pioneira, mas estabeleciam seus limites, como heterossexual, branca.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.