A Índia relatou nesta terça-feira, 27, mais de 300 mil novos casos de covid-19 pelo sexto dia seguido. O ritmo avassalador da doença colocou de joelhos o precário sistema de saúde indiano. O retrato da crise são os crematórios de Nova Délhi, construindo piras improvisadas para dar conta dos cadáveres que não param de chegar. A situação é tão grave que vários países vêm barrando a entrada de indianos, isolando cada vez mais a Índia.
Nesta terça-feira, Emirados Árabes, Espanha, Filipinas e Camboja entraram na lista de países que impuseram restrições a viajantes da Índia – o Brasil ainda não anunciou nenhuma medida restritiva específica. Alguns chefes de governo cancelaram visitas que fariam ao país, como os premiês do Reino Unido, Boris Johnson, e do Japão, Yoshihide Suga. Nesta terça-feira, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, definiu a situação de "desoladora".
Os novos casos na Índia ajudaram a puxar as taxas de infecção globais para níveis recordes. Tedros alertou que muitos países ainda estão experimentando uma transmissão intensa, com mais casos novos globais na última semana do que nos cinco primeiros meses da pandemia. O país também registrou 2.771 mortes nesta terça-feira, um número considerado subestimado em meio a relatos de que muitas mortes prováveis de covid-19 estão sendo oficialmente atribuídas a causas subjacentes ou não foram registradas.
Os hospitais na Índia, especialmente nas grandes cidades, estão sob pressão com a enxurrada de pacientes, à medida que o número de casos disparou nas últimas semanas com o avanço das novas variantes mais virulentas e relaxamento de restrições. Hospitais em algumas cidades pararam de admitir pacientes em meio a uma corrida por oxigênio, respiradores e remédios. Em alguns hospitais, pacientes morreram depois que o estoque limitado de oxigênio acabou.
A situação gerou raiva contra o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, cujo governo permitiu comícios eleitorais lotados e festivais religiosos e se gabou de ter chegado ao fim da pandemia poucas semanas antes do início do último aumento. Muitos também estão frustrados com os atrasos no programa de inoculação em um país que é o maior produtor mundial de vacinas. O governo indiano tentou abafar as críticas durante o novo surto, incluindo uma petição no Twitter para remover tuítes que criticavam a forma como o governo está lidando com a crise.
Em Nova Délhi, na segunda-feira, as autoridades ordenaram que um hotel de luxo fosse transformado em um centro de saúde para atender exclusivamente os juízes do tribunal superior e suas famílias infectadas com o coronavírus. O governo local disse que o Supremo Tribunal da capital havia solicitado a reserva de 100 quartos no Ashoka Hotel para juízes e suas famílias. Mas na terça-feira, a Suprema Corte recuou, dizendo que nunca pediu tratamento especial e chamou a provisão de tratamento especial de "errada", informou a NDTV da Índia.
À medida que a crise continua, as promessas globais de fornecer suprimentos médicos ao país atingido crescem. O presidente americano, Joe Biden, disse a Modi na segunda-feira que o suprimento de oxigênio, medicamentos e vacinas estavam a caminho.
A empresa biofarmacêutica americana Gilead Sciences confirmou na segunda-feira que daria à Índia quase meio milhão de frascos do antiviral remdesivir, que os especialistas dizem ter sido bem-sucedido no tratamento de pacientes com covid-19. Os hospitais indianos estão com poucos suprimentos, pois os medicamentos estão sendo vendidos a preços exorbitantes no mercado paralelo.
Na terça-feira, o primeiro carregamento de ajuda do Reino Unido chegou ao país, incluindo 100 respiradores e 95 concentradores de oxigênio, com mais a caminho. A França, entre outros países, também anunciou planos de envio de equipamentos médicos. Tedros disse que 2.600 funcionários da OMS foram enviados como parte de sua resposta à crise na Índia. Ele acrescentou que a OMS também enviou "equipamentos e suprimentos essenciais, incluindo milhares de concentradores de oxigênio, hospitais de campanha móveis pré-fabricados e suprimentos de laboratório".
<b>Sem espaço para os mortos</b>
Em um retrato desolador da crise no país, redes sociais e os artigos da imprensa foram inundados com imagens de fogueiras acesas e crematórios incapazes de lidar com a situação. Em Ghaziabad, perto de Nova Délhi, os canais de televisão transmitiram imagens de corpos envoltos em mortalhas e alinhados no chão, aguardando a cremação.
Em Nova Délhi, as autoridades teriam cortado árvores em parques da cidade para usar como lenha em piras funerárias, segundo reportagem da BBC. Parentes dos mortos também foram solicitados a ajudar nas cremações, empilhando lenha e ajudando em outros rituais.
No Estado de Gujarat, muitos crematórios funcionam 24 horas por dia. Em Ahmedabad, a chaminé de um deles desabou após duas semanas operando 20 horas por dia e em Surat a estrutura de ferro de outro crematório derreteu parcialmente devido ao excesso de calor.
Em Lucknow, no norte, a espera às vezes é tão longa que uma família começou a queimar um corpo em um parque adjacente a um dos crematórios, informou uma autoridade à agência France Presse. Alguns crematórios em Lucknow, enfrentando escassez de lenha, tiveram que pedir às famílias que trouxessem seu próprio combustível.
Varanasi é o local tradicional onde os hindus são cremados desde tempos imemoriais, às margens do Rio Ganges. Belbhadra, que trabalha em um dos aterros de incineração às margens do rio, disse à France Presse que estavam cremando pelo menos 200 vítimas suspeitas de coronavírus por dia.
O tempo normal para chegar ao aterro da estrada principal através de pistas estreitas costumava ser de três ou quatro minutos, mas agora leva cerca de 20 minutos. "As pistas estão cheias de pessoas esperando para incinerar os mortos", disse um morador.
Nos cemitérios, a carga de trabalho dos coveiros aumentou dramaticamente nas últimas semanas. O cemitério Jadid Qabristan Ahle, na capital indiana, confinada desde segunda-feira à noite por uma semana, recebeu onze mortos em três horas. Ao pôr do sol, 20 mortos haviam sido enterrados.
Mohamed Shamim, um coveiro de 38 anos, lembra de alguns dias em dezembro e janeiro, durante os quais sua escavadeira não trabalhava. "Nesse ritmo, em três ou quatro dias não haverá mais espaço", afirma. Ao redor do cemitério, trabalhadores em trajes de proteção, manejam cadáveres em sacos brancos ou caixões de madeira barata. (Com agências internacionais)