Fã de John Ford, o repórter inicia a entrevista com o diretor José Eduardo Belmonte com uma observação sobre a ligação ética, o confronto respeitoso entre os antagonistas de seu longa Alemão 2 – o policial Vladimir Brichta e o traficante Digão Ribeiro. "Nossa intenção nunca foi fazer um bangue-bangue com mocinhos e bandidos. As relações nasceram e foram se construindo cada vez mais complexas. As UPPs viraram uma tragédia brasileira. Os confrontos nas comunidades têm feito muitas vítimas inocentes. Se isso estivesse ocorrendo no asfalto, nas áreas nobres do Rio, a história seria outra."
Alemão 2 estreia em mais de 250 salas do Brasil. Em 2014, o primeiro filme ultrapassou a marca de 1 milhão de espectadores, mas era outro mundo, outro Brasil. A pandemia bagunçou o mercado, ainda é só uma parcela do público que frequenta as salas, e ainda por cima a que prestigia os blockbusters de super-heróis. O Homem-Aranha arrebentou nas bilheterias no ano passado. Alemão 2 chega enfrentando a concorrência de Morbius, que entra em 1.750 salas, de 652 cinemas. Isso significa que, nos shoppings principalmente, Morbius estará em diversas salas dos mesmos complexos. Comparativamente, Alemão 2 sai bem menor – 262 salas.
"Nosso filme não é da Marvel, ressignifica o conceito do mocinho e do bandido", avalia Digão. "Quem vive em comunidade sabe que o mundo não se divide em heróis e vilões." Quando fez as entrevistas de Alemão 2, o repórter ainda não havia visto Morbius, e o filme do sueco de ascendência chilena Daniel Espinosa, embora seja superprodução da Marvel, não segue o figurino tradicional.
Espinosa nasceu na Suécia de pais chilenos exilados pelo golpe de Pinochet. O DNA esquerdista manifesta-se no antagonismo básico em Morbius – o cientista, um humanista, um homem ético, versus o financista, o homem do dinheiro, que se lixa para os outros e acha que tudo pode. Digão, ator também em Eduardo e Mônica e Vale Night, todos filmes bons, anunciou que estava empenhado em promover debates sobre Alemão 2 nas comunidades. "É importante que as pessoas se sintam representadas na tela e discutam o que é essencial, a desigualdade."
<b>PONTO DE PARTIDA</b>
Belmonte dá o devido crédito ao produtor Rodrigo Teixeira, que já havia sido parceiro no 1. "O ponto de partida veio dele, e foi um filme do John Boorman, Inferno no Pacífico, transposto para o Brasil das UPPs e das favelas." No Boorman, de 1968, um soldado americano, Lee Marvin, e outro japonês, Toshiro Mifune, encontram-se, e confrontam-se, numa ilha deserta. São apenas dois, levando a violência ao paroxismo. Viram os personagens de Brichta e Digão, só que, agora, ao redor desses, é todo um mundo que se agita. A polícia, a comunidade. Basicamente, um universo masculino, ou que era um universo masculino.
O diretor conta que, desde o início, sempre houve a intenção de empoderar as mulheres. "Para você ter uma ideia, a Freitas, Leandra Leal, era homem e foi transformada em mulher justamente para realçar a participação feminina na polícia, na comunidade, no mundo." De cara, Freitas tem um diálogo esclarecedor com o policial jovem, Gabriel Leone, quando estão entrando disfarçados na comunidade para sequestrar o poderoso traficante. Ele zomba, uma piada machista, diz que está ali para protegê-la. Ela retruca, durona – Gabriel sangra pelo nariz, Vladimir está sob efeito de comprimidos. Os homens fortes, na verdade, estão fragilizados. O próprio Digão, o traficante, está atado porque tem um oponente na comunidade e ele sequestrou sua mulher e filha.
As mulheres da trama incluem Aline Borges, a policial que coordena toda a operação – e descobre o envolvimento de policiais -, Mariana Nunes e Zezé Motta, como a enfermeira que acolhe em sua casa os policiais, e cujo filho estudante foi morto em operação na favela.
Belmonte só tem elogios para seu elenco. "Gosto de fazer trabalho de mesa antes de filmar. Essa coisa de discutir o roteiro, repetir as falas para que o elenco se sinta confortável. Foram ótimos." Belmonte tem uma trajetória curiosa. Começou com filmes autorais, numa pegada experimental. Era queridinho dos críticos, na época de A Concepção, Meu Mundo em Perigo. Foi parar na Globo. Fez séries, filmes maiores. Aumentar seu público, falar para mais gente, não inibiu seu ímpeto autoral. É uma discussão antiga, o cinema como instrumento de discussão política. Filmes para as massas ou para o grupinho de iniciados?
Algo se passou em 2011, quando Belmonte fez Billi Pig. A comédia com Selton Mello, Otávio Müller e Grazi Massafera foi feita para ser um estouro de bilheteria, mas foi um fracasso. Outro teria desanimado, não Belmonte. "Recebi ali as piores críticas da minha vida, mas o filme foi muito importante como aprendizado, porque fiz minha autocrítica e percebi onde havia errado. Foi o filme que realmente me fez pensar, e repensar, o cinema que queria. Não é por estar na Globo, nem fazer filmes grandes, de ação, como Alemão 1 e 2, que estou desistindo de ser autoral. Tudo o que esse país necessita é de um olhar crítico da gente para esse horror que está aí."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>