Numa noite qualquer pela Rua Augusta, a jovem Charlotiê vê um rato saindo do bueiro e o persegue. Ela cruza com punks, clubbers e usuários de crack. O rato entra em um inferninho e ela tenta fazer o mesmo, mas é barrada pelo segurança. A dramaturgia de Uísque e Vergonha parece ter o ritmo de um grande carrossel, tendo como centro – a engrenagem principal – a jovem desbravadora de São Paulo Charlotiê, personagem de Uísque e Vergonha, da obra de Juliana Frank. Na versão adaptada pela dramaturga Michelle Ferreira, o espetáculo está em cartaz no Teatro Novo e carrega a mesma energia de uma viagem mirabolante pela cidade.
A velocidade com que a trama acontece não está apenas nas palavras, mas na infinidade de personagens e ambientes na encenação de Nelson Baskerville. Em entrevista por telefone, o diretor enumera os lugares por onde a personagem de Alessandra Negrini passa no espetáculo. “Além da Augusta, passamos pelo cemitério do Araçá, há também a casa da personagem, uma escola, restaurante, praia e boate.” Cada um desses espaços está sinalizado em um painel giratório no palco, criado pelo artista visual Carcarah e que, à medida em que Charlotiê se movimento, a estrutura a acompanha.
Outros números que podem surpreender são a quantidade de personagens que a jovem menina-mulher tropeça durante sua jornada. “São 22”, diz Michelle Ferreira. “Mas tem muito mais no original.” Para a dramaturga, a obra de Juliana é instigante “porque há uma verborragia boa de se falar. Ela traz um sabor para as palavras que acontece quando são ditas em voz alta.” Para viver tantos sujeitos urbanos, a peça ainda traz no elenco Erika Puga, Gui Calzavara, Carcarah e a atriz convidada Ester Laccava. “São figuras estranhas e que não têm limites em suas ideias, além de humor afiado e ironia”, acrescenta a dramaturga. “São personagens muito contraditórios, como a própria Charlotiê, que carregam um tanto de juventude e estranheza.”
A obra que inspirou a peça foi lançada em 2016 pela editora Oito e Meio, depois de outras três publicações que também têm mulheres como figuras centrais, independentes e sem pudores sexuais. O primeiro, em 2011, foi o romance Quenga de Plástico (7Letras), sobre uma ex-atriz pornô chamada Leysla Kedman e suas peripécias. Em 2013, considerada revelação da nova literatura brasileira, Juliana lança a história de Lawanda, em Meu Coração de Pedra Pomes (Companhia das Letras), sobre uma funcionária de limpeza que trabalha em um hospital e também é colecionadora de borboletas. Seu desejo é que o amado José Júnior largue a esposa e passe a viver com ela. Para atrair o rapaz, ela lança um estranho feitiçõ – costurar as borboletas em sua calcinha. No mesmo ano, e com a mesma abordagem sem meias palavras, sai Cabeça de Pimpinela, uma obra mais interativa, na qual a autora sugere que o leitor pode escolher ler tanto no tempo presente, quanto no passado. A trama bem brasileira, e marginal, revela a vida de uma personagem que busca um emprego – enquanto tenta sobreviver com R$ 20 por dia, tudo sem perder o rebolado. “Ela tem uma imaginação sem limites”, conta Michelle. “Esta adaptação, por exemplo, dificilmente poderia ser feita de maneira realista. De alguma forma, a plateia saberá que o elenco está interpretando personagens.”
A abordagem da escritora sobre a temática e seu estilo singular levou Juliana, em 2016, para uma mesa sobre literatura e sexo – senão polêmica, um tanto estranha – na 14ª Feira Literária de Paraty (Flip). O debate acompanhado da jornalista peruana Gabriela Wiener e do mediador, o jornalista Daniel Benevides, teve uma série de desencontros incluindo uma Juliana acenando – com o dedo do meio – aos fotógrafos, falando de costas para a plateia, frases como “escrever é sempre sobre sexo”, ao explicar porque escreve sobre o tema, e que faz isso desde quando “era uma estrela.”
UÍSQUE E VERGONHA
Teatro Novo. Rua Domingos de Moraes, 348. Tel.: 2155-0665. 6ª, sáb., 21h30, dom., 19h. R$ 60 / 30. Até 7/7.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.