Entrevistado pela revista Cahiers de Cinéma – na edição de maio, dedicada ao Festival de Cannes -, Pedro Almodóvar narrou a gênese de Dor e Glória, seu grande filme que estreia nesta quinta, 13, em 52 salas de São Paulo Rio, Brasília, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. A empresa Universal garante que, a partir da segunda semana, vai ampliar o circuito para o Nordeste.
Almodóvar contou que o filme começou a nascer como o relato do reencontro de um diretor com seu ator. Fizeram um filme no passado, brigaram e agora se reconciliam. Mas o diretor, que se chama Salvador, está vivendo um momento difícil, consumido por dores. O ator lhe ministra uma droga. A história, no papel, tornou-se sombria, adquiriu uma dimensão que não agradava a Almodóvar. Uma história de dominação, como a de O Criado, de Joseph Losey, uma parceria do cineasta com o dramaturgo Harold Pinter.
Almodóvar deixou a sinopse de lado, mas ela ainda mexia com ele, que voltou ao projeto meses mais tarde, e desta vez tudo se clareou. Ele achou o tom, o que queria contar. É fácil dizer que se trata de um relato autobiográfico. Madri, homossexualidade, droga. Nesse sentido, Almodóvar estaria retomando a vertente de Má Educação, que fez há 15 anos, em 2004. Mas há uma diferença. Aos 54 anos, na época, o grande artista talvez não tivesse maturidade, nem distanciamento, para encarar a própria biografia. Aos 69 – fará 70 em 25 de setembro -, o resultado é outro. Uma obra maior, como Carne Trêmula, Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela ou Volver.
Agora, Salvador reencontra o ator, ele o introduz na droga – a heroína – e o protagonista viaja na lembrança. Na primeira cena, como Benjamin Braddock/Dustin Hoffman em A Primeira Noite de Um Homem, ele está no fundo da piscina. A câmera percorre o corpo de Antonio Banderas, que faz o papel, passa pelo peito, onde é visível a cicatriz da revascularização. O que se segue é uma viagem de peito aberto. Salvador menino está na beira do rio, onde a mãe lava roupa com as amigas, e canta. O menino a olha embevecido, e quem faz o papel, em participação especial, é uma atriz tão almodovariana como é Banderas, Penélope Cruz.
A família é pobre, vai viver num pueblo, onde a casa é uma caverna. Passada a vergonha inicial, a mãe transforma a caverna num lar, e para isso ganha ajuda do pedreiro. Ele é analfabeto, Salvador menino vai ensiná-lo a ler e a escrever. A mãe os olha e pressente que algo vai se passar. Num domingo, enquanto a mãe costura na igreja, o filho e o pedreiro ficam sozinhos. O homem adulto, sujo da obra, pede permissão para se banhar. Fica nu. O pequeno Salvador fecha os olhos, mas a tentação é demais. Ele abre os olhos, vê o sexo masculino, e desfalece. O primeiro desejo. Anos mais tarde, Salvador adulto, num esforço de reerguimento artístico e físico, contará essa história. Almodóvar e a metalinguagem, o filme dentro do filme.
É o tema de Dor e Glória. Compreende-se, então, por que a empresa produtora de Almodóvar, que ele toca com o irmão Agustín, chama-se El Deseo. E também uma coisa que ele diz, como esse filme, possuindo muitos elementos pessoais e autobiográficos, não é 100% autobiográfico. É uma ficção, e das mais belas e pungentes de sua carreira.
Almodóvar trabalha com colaboradores habituais – além dos atores (Banderas, Penélope e Julieta Serrano como a mãe idosa), também o diretor de fotografia José Luís Alcaine e o compositor Alberto Iglesias. Para falar de desejo, recorre a imagens de filmes clássicos – Clamor do Sexo, de Elia Kazan, de 1961, com o jovem Warren Beatty e a não menos jovem Natalie Wood. Cria cenas que já nasceram antológicas – o reencontro de Salvador, não com o ator, mas com seu grande amor, Leonardo Sbaraglia.
No passado, o amante parecia estar se destruindo nas drogas e fugiu para a Argentina. O reencontro desperta o desejo – sempre o desejo. A outra cena é o diálogo com a velha mãe. Ambos falam, de coração aberto, das decepções que possam ter tido um com o outro. É magnífico.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.