Estadão

Alta no petróleo e nos alimentos cria onda de instabilidade mundial

Desde o início da invasão russa à Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, uma multidão tentou incendiar a casa do presidente de Sri Lanka, caiu o premiê do Paquistão, Peru e El Salvador entraram em estado de emergência, o governo do Egito foi tomado pelo pânico de uma nova revolução e o da Tunísia fechou o Parlamento. Na Europa, quase todos sentiram o baque econômico, mas instituições sólidas amorteceram o impacto político.

A invasão russa da Ucrânia é a primeira guerra global, segundo o economista Thomas Friedman, colunista do New York Times. Pelas redes sociais e com um smartphone na mão, é possível acompanhar os combates de qualquer lugar do mundo. Mas é mais do que isso. Para Ian Bremmer, presidente da consultoria Eurasia, o conflito é o acontecimento mais importante depois da queda do Muro de Berlim porque vem incendiando o planeta inteiro.

"Aumentos acentuados da inflação criam um choque econômico com implicações sociais e políticas", diz Joseph Siegle, diretor do Centro Africano de Estudos Estratégicos, de Washington. "Mas isso só leva à instabilidade política em países que já enfrentam níveis altos de fragilidade."

<b>Antecedentes</b>

Para Carla Martinez Machain, professora de ciências políticas da Universidade do Estado do Kansas, a economia pode até não ser a causa final da queda de um governo, mas é o fator que mais incita a população. "Especialmente os mais pobres", afirma.

Economistas lembram que o caldeirão de insatisfações vem fervendo em fogo baixo há algum tempo, mesmo antes da pandemia. O movimento dos coletes amarelos, que atormentou a França, começou em outubro de 2018 em reação à alta dos combustíveis.

Quando o alarme do vírus soou na China, em dezembro de 2019, as ruas do Chile já estavam pegando fogo. Os protestos começaram com uma campanha de estudantes contra o aumento do bilhete do metrô – e logo se tornaram uma gritaria contra o custo de vida.

Nos dois anos seguintes, a covid fez o planeta prender a respiração, causando um desequilíbrio no mercado. Com a reabertura, a demanda reaquecida entrou em choque com uma capacidade de oferta reduzida, travada por gargalos de logística e produção. Alguns economistas sustentam que os pacotes de estímulo pressionaram ainda mais a inflação, variando de acordo com o país.

Brasil e Argentina injetaram 12% do PIB na economia. Os EUA colocaram US$ 6 trilhões, pouco mais de 26% do PIB. Recordista, o Japão gastou 53,7% do PIB em incentivos. Foi diante desse cenário que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia. Ou seja, o conflito não pariu a crise atual, mas jogou gasolina na fogueira. "Muitos protestos antecederam a invasão. No Peru, a polarização vem desde a eleição de 2016", diz o analista peruano Carlos Meléndez. "Mas a guerra serviu de gatilho."

No início da invasão, muita gente questionou por que uma guerra na Europa merecia mais atenção do que outros conflitos ao redor do mundo. Em que pese o sofrimento de iemenitas, afegãos, rohingyas ou sírios, a chave para entender a importância da Ucrânia não tem relação com a cor da pele ou com o cristianismo ortodoxo dos ucranianos.

O que explica sua relevância é uma privação que norteou outras guerras e revoluções: a falta de comida. E, por trás da carestia, está a inflação, empurrada pela disparada do preço da energia, principalmente do gás e do petróleo. É o maior exportador de trigo do mundo (Rússia) invadindo o quinto maior (Ucrânia) no meio de uma pandemia global.

O risco é fácil de entender. Sozinho, o trigo representa 20% do consumo de calorias do ser humano. Dele, depende o pão, o motor de todas as agitações. A alta do preço dos grãos provocou mais de 600 revoltas na França, entre 1760 e 1789, até que a rainha Maria Antonieta mandasse a população comer brioche, selando o destino da monarquia.

<b>Grãos</b>

Segundo Cinthia Bouton, historiadora da Texas A&M University, o preço do pão puxou o tapete de vários governantes ao longo da história, do Império Romano à União Soviética. O caso mais recente foi a Primavera Árabe, estimulada pelo aumento do preço dos alimentos entre 2008 e 2011 – embora muitos enfatizem também outros fatores.

Upali Aratchilage, economista da FAO, agência da ONU para agricultura e alimentação, lembra que quebra de safras e gargalos logísticos contam apenas parte da história da disparada dos preços. "A maior pressão vem do aumento da energia, da escassez de fertilizantes e do preço das rações", afirma.

A guerra na Ucrânia afetou um quarto do comércio mundial de trigo, um quinto do mercado de milho e 12% de todas as calorias comercializadas globalmente. Jeffrey Currie, estrategista do Goldman Sachs, disse à Bloomberg que nunca viu os mercados assim nos últimos 30 anos. "Petróleo, gás, carvão, cobre, alumínio. Falta tudo."

Em março, um relatório do FMI esmiuçou o impacto da guerra em várias partes do mundo. Além de sofrimento na Ucrânia e na Rússia, o choque será sentido em duas frentes. Primeiro, a insatisfação mais mundana com a inflação. Protestos pacíficos já foram registrados em Portugal, Espanha, Itália, Reino Unido, França e Alemanha.

Na América Latina, a inflação descontrolada é uma bomba-relógio. Em El Salvador e no Peru, o detonador parece já ter entrado em contagem regressiva. Os argentinos foram para as ruas esta semana. No Brasil, o aumento dos preços e a falta de fertilizantes se tornaram uma dor de cabeça para o governo.

Os exportadores de banana do Equador, que vendiam 25% da produção para Rússia e Ucrânia, estão atônitos. Cuba, Nicarágua e Venezuela, que dependem de financiamento russo para amenizar a mordida das sanções americanas, deram mais um passo para a beira do precipício. A salvação do chavismo pode estar na aproximação dos EUA, interessados em aumentar a oferta de petróleo para segurar os preços.

"Não me espantaria ver em breve empresas americanas explorando petróleo venezuelano", diz Erik del Búfalo, professor da Universidade Simón Bolívar, cético sobre a chance de desestabilização do regime. "A sociedade venezuelana está esgotada. Não há ninguém mais para liderar protestos."

A situação é mais grave na África, que importa 85% dos alimentos que consome – um terço vem de Rússia e Ucrânia. No Quênia e na Somália, a pandemia foi um sopro diante da seca, que deixou 3 milhões de quenianos na pobreza extrema e um terço dos somalis com fome aguda. A atual pressão inflacionária apenas agravou o quadro, especialmente na Etiópia, paralisada pela guerra civil.

<b>Remessas</b>

Uma segunda forma de impacto, segundo o FMI, afetará os vizinhos da Rússia. Além da inflação, alguns terão de pagar a conta dos refugiados, como é o caso do Leste Europeu. Mais de 5 milhões de ucranianos já fugiram da guerra, a maioria para a Polônia, que pediu ajuda de 2,2 bilhões de euros à União Europeia.

Já os vizinhos da Ásia Central serão sufocados pela interrupção das remessas do exterior. O Quirguistão será o mais afetado – 31,3% do PIB quirguiz depende do dinheiro enviado por imigrantes, dos quais 83% vêm da Rússia. As economias de Tajiquistão, Casaquistão e Usbequistão também sofrerão um tombo sem os rublos embargados pelas sanções.

Para o economista Tinglong Dai, da Johns Hopkins University, a guerra ameaça criar uma nova "geoeconomia". "As empresas devem encarar a possibilidade de uma nova Cortina de Ferro, com a Rússia e seus aliados de um lado, e o Ocidente do outro. Isso pode ser o fim das cadeias de suprimentos globais como as conhecemos."

As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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