Ana Maria Machado já foi jornalista, fez programa de rádio, foi dona de uma livraria. Entre uma função e outra, jamais deixou de escrever. Com 12 anos, teve uma redação escolar, “Arrastão”, publicada na revista Folclore. Profissionalmente, porém, sua estreia aconteceu em 1969, quando publicou histórias na revista infantil Recreio. Desde então, nessas cinco décadas de produção que comemora agora, já soma mais de cem livros publicados no Brasil e em mais de 17 países, entre obras para crianças, adultos e de não ficção, alcançando mais de 18 milhões de exemplares vendidos.
Para as crianças, Ana Maria destaca-se como criadora de um texto de rara musicalidade, além de um estilo leve e, ao mesmo tempo, denso – seu nome é uma das referências nacionais, ao lado de Ruth Rocha e Lygia Bojunga Nunes. Já sua literatura adulta é marcada por uma escrita apurada, desafiadora, denunciadora. Na verdade, tais frases poderiam ser invertidas, pois Ana Maria busca a cumplicidade do leitor, independente de sua idade.
Ganhou inúmeros prêmios, com destaque para o Hans Christian Andersen, em 2000, considerado o Nobel da literatura infantil mundial. Presidiu a Academia Brasileira de Letras por dois mandatos (2012 e 2013). Colecionou ainda dissabores, como ser obrigada a deixar o Brasil em 1970, quando se exilou na França. E foi lá que trabalhou com o sociólogo Roland Barthes, cuja orientação resultou em uma tese de doutorado que, por sua vez, foi editada em livro como “Recado do Nome” (1976), sobre a obra de Guimarães Rosa.
Ana Maria encontrou-se com a reportagem na sede da Editora Moderna, em São Paulo, que detém cerca de 60 de seus títulos para crianças – alguns já se tornaram clássicos, como “Bisa Bia, Bisa Biel” e “Era Uma Vez um Tirano”. Os festejos pelas cinco décadas de escrita profissional continuam com o lançamento, nesta semana, de uma edição comemorativa dos 20 anos de “Audácia Dessa Mulher” (Alfaguara), em que revisita Capitu, personagem de Machado de Assis. Ela ainda será homenageada na 19ª Bienal Internacional do Livro, que acontece no Rio, em agosto, e já prepara “Vestígios”, reunião de contos já publicados com inéditos. Aos 77 anos, mantém uma rotina artística ativa.
Antes de iniciar a carreira como escritora, você fez um curso de pintura, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que te ajudou depois na escrita, não?
Com certeza. Fiz um curso de pintura no MAM com Aloizio Carvão, que foi muito importante: eu nunca tinha trabalhado com alguém que tivesse sido tão exigente, mas, ao mesmo tempo, que tivesse me dado tanta força, me preparando para a dureza de ser artista.
E como isso a levou para a escrita?
Foi algo inconsciente, sem sentir. O principal foi aprender a estar exposta à crítica permanente (apresentávamos nossos trabalhos aos membros do grupo), o que possibilitou o desenvolvimento da autocrítica como atitude de artista. Sempre escrevi, desde menina, mas não tinha pensado em transformar isso em uma profissão – levava minha carreira de pintora, fazendo exposições individuais e coletivas. Quando fui desafiada, comecei a escrever profissionalmente.
Foi nessa época, 1969, que a ditadura militar endureceu ainda mais. Você foi presa e, depois, obrigada a se exilar em Paris.
Não foi nada preparado: em dez dias, já estava em um navio cargueiro. E ainda tive de embarcar em um porto no Nordeste. Anos depois, escreveria sobre essa época no romance Tropical Sol da Liberdade.
Em Paris, você fez o curso de doutorado com Roland Barthes. Foi algo pensado?
Não. Soube que ele estava voltando de uma viagem ao exterior e abriria espaço para 20 pessoas como ouvintes de seu curso, em Paris. Eu me inscrevi e, depois de uma entrevista, ele me chamou para pertencer a esse grupo. Logo, ele passou a me orientar no doutorado, na pesquisa que eu já iniciara no Brasil, com o Afrânio Coutinho, sobre a importância do nome na obra de Guimarães Rosa.
Nesse período fora, você continuou colaborando com a Recreio. De alguma forma, o exílio marcou essas histórias?
Talvez. Hoje, vejo que Currupaco Papaco é uma história de exílio, pois mostra um papagaio que vive em um lugar frio, quase virando picolé, e com vontade de voltar para um lugar quente, onde tinha frutas, todo mundo era amigo.
Aliás, qual é o desafio hoje para se escrever para o público infantil? A tecnologia alterou alguma coisa?
Não acho que tenha mudado intrinsecamente, mas mudaram as circunstâncias da criança. Ou seja, mudaram a tecnologia, a velocidade, mudou também o tipo de tentação: agora não é mais quintal, subir em árvore, brincar com o cachorro andando na rua – agora é o joguinho. Mas o que mudou de fato são os adultos em volta da criança, que não dão mais exemplo de leitura. Isso é muito forte. Outra mudança importante diz respeito à preocupação dos adultos em volta da criança em relação à leitura: ora as crianças são cobradas para ler, ora os adultos desconfiam da leitura, temendo o conteúdo e vendo fantasma onde não existe.
Isso faz lembrar o caso de uma mãe que, no ano passado, postou que seu livro “O Menino que Espiava Pra Dentro”, de 1983, estaria incitando o suicídio entre as crianças, certo?
Sim, foi algo como um tsunami que, de tão absurdo, eu nem sabia como agir. E o assunto ainda rende, pois continuo recebendo ameaças.
A obra de Monteiro Lobato também sofreu acusações.
Quem lê Lobato sabe da existência de coisas que são criticáveis, erradas, desprezíveis, mas nada disso tira o que Lobato traz de bom. Quem leu sabe medir o que se deve jogar fora e o que é aproveitável.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.