Celebrada como uma das principais autoras de literatura infantojuvenil do mundo (venceu, em 2000, o Prêmio Hans Christian Andersen, equivalente ao Nobel de Literatura para adultos), Ana Maria Machado foi surpreendida em 2003 pela sinceridade cortante de um menino, durante uma visita que ela fazia ao México – depois de lhe perguntar a idade (o que deixou a professora desconcertada), o garoto valeu-se da sinceridade típica dos mais novos e perguntou: "Como uma velha de 62 anos (nessa hora, a professora não sabia mais onde se esconder) que mora lá longe, no Brasil, consegue saber direitinho o que se passa dentro da cabeça de um menino de 10 anos como eu, que mora aqui no México?" E arrematou: "E a senhora nem me conhece…".
"Foi lindo perceber como aquela criança conseguiu formular do seu jeito a sensação provocada pela experiência da leitura", comenta Ana Maria em conversa com o <b>Estadão</b>. "O que me faz lembrar da alegria que senti quando criança e adolescente ao me identificar, por exemplo, com o anseio de liberdade de Huckleberry Finn, personagem de Mark Twain em As Aventuras de Huck."
<b>ESPÍRITO CRÍTICO</b>
Ana Maria completa 80 anos neste dia 24 e, para festejar, a editora Ática lança agora Rastros e Riscos, um longo relato em que a escritora rememora sua interação com o público, desde leitores até professores. Trata-se de um encadeamento de histórias espontâneas, movidas pela forma como a literatura (e, em especial, a de Ana Maria) deu novo rumo para a vida de muitas pessoas. Como o garçom Zé, que revelou extraordinário senso crítico literário mesmo sem muito estudo, ou o garoto André, de 8 anos, que, a despeito das várias tragédias que colecionava ainda em tenra idade (chegou a ser preso dentro do frigorífico de um supermercado porque "incomodava" os clientes ao pedir carne para a mãe e os irmãos menores), discutia com espírito crítico os livros lidos.
"Rastros e Riscos é um registro precioso da transformação que a leitura pode ter na sociedade", atesta, no prólogo do livro, Marcos da Veiga Pereira, editor que presenciou muitas das histórias relatadas. Ana Maria conta que começou a rascunhar durante a pandemia. "Estava trancada, como a maioria das pessoas, então fiquei procurando na memória lembranças alegres que passaram a me alimentar naquele momento."
<b>CUMPLICIDADE</b>
Ana Maria Machado já soma mais de cem livros publicados no Brasil e em mais de 17 países, entre obras para crianças, adultos e de não ficção, alcançando mais de 18 milhões de exemplares vendidos. Se as obras para crianças são marcadas por textos de rara musicalidade, além de um estilo leve e, ao mesmo tempo, denso, os livros direcionados aos adultos trazem uma escrita apurada, desafiadora, denunciadora. Na verdade, tais frases poderiam ser invertidas, pois Ana Maria busca a cumplicidade do leitor, independentemente da idade.
Sua estreia aconteceu em 1969, quando publicou textos na revista infantil Recreio, ponto de partida para a criação de histórias que logo se tornaram clássicas, como Bisa Bia, Bisa Bel, Raul da Ferrugem Azul e Era Uma Vez Um Tirano. No ano seguinte, porém, foi obrigada a deixar o Brasil, quando se exilou na França.
O gosto por outras vidas e suas histórias alimenta as escolhas de Ana Maria como leitora e escritora, algo que lhe possibilita um intenso prazer intelectual. É o que se observa em Esta Força Estranha, relançado pela Atual Editora também para festejar suas oito décadas de vida. Na obra, cujo título se inspira na canção de Caetano Veloso de mesmo nome, Ana Maria relembra sua trajetória artística, que inclui o trabalho como chefe de jornalismo da Rádio Jornal do Brasil, em 1973 ("Isso me deu muita tarimba do ofício de escrever, muita intimidade com a linguagem oral e acessível"), até a vocação como pintora – antes de iniciar a carreira na literatura, ela fez um curso de pintura, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, com Aloizio Carvão, que a ajudou depois na escrita, como aprender a estar exposta à crítica permanente.
<b>ATMOSFERA</b>
Ciente de que a palavra escrita é generosa porque não há limite para seu alcance, Ana Maria conta que a maioria de seus livros foi criada sem que soubesse como seria o desenvolvimento. "Alguns começaram com a ideia forte de um personagem que vai crescendo, outros com a sensação de uma atmosfera que exige ser fixada no papel, outros com uma situação, um problema, um conflito a ser solucionado."
Há exceções curiosas – o romance Tropical Sol da Liberdade (1988), por exemplo, começou a partir de uma palavra, casa, que ela digitou a esmo para testar o Macintosh de uma amiga. "Para ver como era a maiúscula, escrevi A casa. Completei a frase: A casa era sólida e ensolarada. Vi o duplo sol aí dentro, logo soube que casa era, e porque sua solidez era fundamental", escreve ela. "Fui emendando uma frase na outra, minha amiga saiu, me deixou escrevendo, de noite quando voltou eu tinha quatro ou cinco páginas prontas."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>