Tradicionalmente, os musicais brasileiros se inspiram em artistas que já morreram. Elis Regina, Tim Maia, Cássia Eller, Cazuza e Chacrinha foram alguns dos últimos “protagonistas” nos palcos. Com Beth Carvalho não foi assim. “É algo muito diferente ver sua vida retratada no palco. Bom ter isso em vida, e chegando aos 50 anos de carreira”, disse a cantora na noite de quarta-feira, 9, na estreia para convidados de Andança, espetáculo sobre sua vida que estreou no teatro Maison de France, no centro do Rio – a temporada é longa, vai até 31 de janeiro.
A sambista se fez presente em todo o processo de construção do texto. Teve minuciosas conversas com o autor, Rômulo Rodrigues, assistiu a ensaios, sugeriu acréscimos, personagens, músicas. Só não opinou na escolha das três atrizes que a interpretariam na infância, juventude e maturidade. Elas foram selecionadas entre mais de mil horas de vídeos enviados à produção. “Beth participou, mas não censurou nada. Até falamos da vida particular, da filha, dos três casamentos”, diz o autor. Ele teve a ideia do musical quando trabalhava num espetáculo sobre o compositor João do Vale. “Poxa, só podemos falar de quem já morreu?”, pensou Rodrigues, que tem 37 anos e cresceu ouvindo os sucessos da intérprete.
O trabalho começou em 2012 e o plano era estrear em 2013. Mas calhou de o patrocínio e as datas no teatro só surgirem para 2015. Assim, a peça coincide com os 50 anos de carreira da homenageada, que está fazendo shows comemorativos (dia 23 será no Citibank Hall de São Paulo; dia 26, no do Rio). Em 2016, Beth estará às voltas com mais uma data redonda: faz 70 anos em 5 de maio.
“Foi um processo muito arrepiante, muitas lágrimas rolaram. Montamos a peça no play do prédio da Beth, ela adorou, ficou emocionada”, conta o diretor, Ernesto Piccolo.
A dramaturgia abarca desde a infância da carioca Elizabeth Santos Leal de Carvalho, enfocando sua troca de afeição do balé clássico pela música até a consagração como intérprete de sambas. Busca realismo o tempo todo, com atores emulando maneirismos e o jeito de cantar de artistas como Nelson Cavaquinho, Martinho da Vila e Milton Nascimento. Se, por vezes, escorrega no sentimentalismo, tem por mérito a direção musical de Rildo Hora, íntimo do cancioneiro de Beth há mais de 40 anos. Ele próprio está em cena como personagem. “Acompanho a Beth desde os discos da RCA (nos anos 1970), mas já era amigo dela quando era cantora de bossa nova. A transferência para o samba foi a mais natural possível, não foi jogada de marketing”, lembra.
Cinquenta e nove músicas embalam a história, desde a Beth menina (Jamilly Mariano), que ouve os sucessos do rádio com a mãe (Lenita Lopes) e o pai (Mauricio Baduh). O público canta junta os sucessos populares dos anos 1970 e 1980. A partida é com Andança (Edmundo Souto/Paulinho Tapajós/Danilo Caymmi), egresso do Festival Internacional da Canção de 1968 (tirou o 3.º lugar, perdendo para Sabiá, de Tom Jobim/Chico Buarque, e Para Não Dizer Que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré).
1800 Colinas (Gracia do Salgueiro), AsRosas Não Falam (Cartola), Folhas Secas (Nelson Cavaquinho/Guilherme de Brito) e Camarão Que Dorme a Onda Leva (Beto sem Braço/Zeca Pagodinho/Arlindo Cruz) são cantadas em coro. Mas não tanto quanto Vou Festejar (Jorge Aragão/Dida/Neoci Dias) e Coisinha do pai (Jorge Aragão/Almir Guineto/Luiz Carlos da Vila).
O destaque do musical, que tem 23 atores e nove músicos tocando ao vivo, é a cantora e atriz Stephanie Serrat, a Beth dos 17 aos 40 anos: é ela a cantora de bossa nova de festinhas da zona sul, a menina apaixonada por música popular e pela Mangueira, que luta por um destaque nos festivais, que se aproxima de Nelson Cavaquinho e Cartola.
Eduarda Fadini é a “madrinha do samba”, a Beth no auge da popularidade, que frequenta o Cacique de Ramos, revela ao Brasil, entre outros, Zeca Pagodinho, milita pelas Diretas, casa-se e tem a filha, Luana, hoje com 34 anos. A peça chega até ao seu grave problema de coluna, que a levou à mesa de operação para a colocação de dez pinos de sustentação. Entre 2012 e 2013, a cantora ficou um ano internada. Em seguida, retomaria os shows, mas não pode dispensar mais o apoio da cadeira de rodas.
Na estreia teatral, a cadeira se transformou numa espécie de trono, instalado no meio do teatro e ao qual os convidados se dirigiam para saudações e pedidos de selfies. Beth aplaudiu cada número, cantou junto algumas músicas e lacrimejou. “São 50 anos de carreira, e isso não é qualquer um que faz. Eu estou muito feliz com tudo isso”, declarou, no intervalo da peça.
A encenação é iniciada por uma fala do jornalista Sergio Cabral. Esta diz que se ele fosse inventar a cantora ideal, diria que, além de ter uma voz bonita, ela precisaria ser capaz de transmitir as emoções evocadas pelas músicas: “Sugeriria que ela servisse de ponte entre a cultura popular e o consumo, não deixando que o objetivo prejudicasse a origem. Teria que ser, portanto, uma cantora de muito talento. Beth Carvalho me poupou este trabalho. Ela já existe”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.