A criança de um Brasil antigo acreditava que ficaria amorosamente protegida durante suas horas de sono noturno, se, antes de arrumar-se, com conforto, sobre travesseiro e colchão, ajoelhasse ao lado da sua cama, apoiasse os cotovelos nela, cruzasse suas pequenas mãos, fechasse os olhos. E, baixinho, recitasse o mantra mágico que sua avó lhe havia ensinado. Logo, um anjo invisível iria sobrevoar sobre ela. Um pássaro silencioso. Movido pelo leve movimento de duas asas. Enormes. A criança sabia que aquele guardião alado vestiria uma camisola branca, apropriada para o horário. O anjo estaria sorrindo. E seu coraçãozinho serenaria.
O mantra para chamar aquele ser maravilhoso era assim: “Santo Anjo do Senhor. Meu zeloso guardador. Que, a ti, me confiou a piedade divina. Hoje, e, sempre, me governa, rege, guarda e ilumina”.
Agora, adulta, aquela velha criança parece ver, na imagem de Chico Buarque e Fernanda Montenegro, uma dupla de Anjos da Guarda, vestidos de branco, sorridentes e enlaçados, perscrutando com seus olhares o espaço à volta dela. Há, no País, um Capetão solto.
Foi em 1977 que estes dois Anjos da Guarda da Nação se deixaram fotografar. Sobre seu peito, Chico pôs a mão sábia de Fernanda sobre seu peito. Lá, ele guarda afeto por nós. Na ocasião, ambos tinham ajudado a manter a obra de Betinho – a Ação Conta a Fome – que, hemofílico, morrera no ano anterior. Para isto, gravaram, juntos, “Construção”, de Chico. Foi algo celestial. Que atraiu 30 anjos-músicos, com seus instrumentos: trombone, violoncelo, clarineta, violino, saxofone soprano, saxofone tenor, flauta, viola de arco, trompete, teclados, baixo elétrico, acordeon, bateria, e até, o fliscorne, da família dos trompetes, porém com design e sons distintos. Resultado: Chico começa a cantar e surge uma orquestra de apoio, nunca vista ou ouvida, antes.
Vinte anos depois (um segundo apenas, na eternidade de seus propósitos), os dois anjos voltaram a se juntar. Desta vez, para proteger o grupo de anjos cantores que tinha decidido criar um clipe em defesa Direitos Humanos, garantidos pela ONU, havia 70 anos. Mas, dos quais, muitos brasileiros, ainda, são privados. Chico e Fernanda acrescentaram suas vozes à “Manifestação”, escrita por Carlos Rennó, “numa sentença, num mantra, num grito ou numa oração”, em favor de negros, pobres, índios, casais gays.
Nada, porém, pode alegrar mais, hoje, – no breu da noite do Brasil, onde fomos confinados – do que ouvir a gravação anterior, raríssima e exclusiva, destes dois anjos de nossa guarda. Ouça-a no link: https://www.youtube.com/watch?v=jAGoEauJR2Y
Verá ser impossível não lembrar de outro Anjo da Guarda Nacional. Aquele que, vestido de branco, espalhou amor por nós, na noite escura da Ditadura Militar. O nosso poetinha Vinicius de Moraes.