Variedades

Antunes Filho se tornou mestre de gerações

Antunes Filho morreu como planejava: sem se afastar do palco. Sua última peça, “Eu Estava em Minha Casa e Esperava que a Chuva Chegasse”, estreou em setembro do ano passado no festival Mirada, em Santos. Era mais uma montagem no contexto de uma carreira extensa – foram mais de 60 anos dedicados ao teatro. O diretor, porém, ainda tratava cada peça como uma situação de risco máximo, fazia e refazia as cenas ensaiadas à exaustão, exigia apuro em cada gesto e em cada voz, tinha ganas de mudar tudo mesmo que faltassem poucas horas para as cortinas se abrirem.

O encenador, cuja trajetória se confunde com a do moderno teatro brasileiro, não será lembrado apenas pela sua genialidade. Antunes acreditava em trabalho – horas, dias, meses de dedicação, pesquisa e suor. E foi assim, exigindo sempre a potência máxima de seus atores, que se tornou mestre de gerações: Laura Cardoso, Eva Wilma, Miriam Mehler, Raul Cortez, Stênio Garcia, Cacá Carvalho, Giulia Gam, Marco Antonio Pâmio, Luís Melo, Arieta Côrrea, Lee Thaylor e tantos outros.

Para criar “Macunaíma” (1978), Antunes trabalhou durante um ano inteiro, mais de dez horas por dia. O resultado, um marco do teatro brasileiro de todos os tempos, representou um ponto de inflexão na carreira do artista – momento em que ele deixou de ser um encenador competente para tornar-se um artista que experimenta e vai adiante em tudo o que faz. Mantendo-se fiel ao texto de Mário de Andrade, o que significava deixar de lado qualquer psicologismo e passar a lidar com os pressupostos inexplicáveis da magia, o espetáculo também bebia nas influências que alterariam o seu teatro e significariam uma profunda renovação para as artes cênicas brasileiras. De repente, é como se acertássemos o passo o contexto internacional – bebendo na estética de Bob Wilson, de Tadeusz Kantor e da arte Povera- mas sem deixar de lado uma brasilidade que se exprimia em cores e formas.

A repercussão nacional e internacional – “Macunaíma” tornou-se a peça brasileira mais vista e aplaudida no exterior – abriu espaço também para uma nova forma de criação. Seu grupo de atores passa a se chamar também Macunaíma e surge o importante CPT – Centro de Pesquisa Teatral. A partir desse momento, o diretor prefere lidar com intérpretes mais jovens.

Recentemente, tinha-se, por vezes, a sensação de que seus elencos não possuíam a envergadura necessária para dar corpo às suas ideias. Mas o diretor perseverava, acreditando que primeiro era preciso formar um ser humano completo, com independência de pensamento, para que só depois surgisse o ator. Controverso, chamado por muitos de tirano e autoritário, desenvolveu uma rigorosa e singular metodologia: um sistema de técnicas e meios expressivos que envolvia Stanislavsky, Brecht e ia além.

Antunes não lidava com a ideia da novidade pura, mas do novo que surge em relação ao acúmulo e ao diálogo com as tradições. Antes da revolucionária versão para a rapsódia de Mário de Andrade trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia – TBC, onde esteve ao lado dos encenadores italianos Adolfo Celi, Ruggero Jacobbi e Luciano Salce. À época, já era um acurado diretor de atores, mas criava peças bem-feitas, quase de entretenimento. São desse período criações como “Plantão 21” (1959), obra em que explora recursos cinematográficos. Nesse começo de carreira, seu objetivo parecia criar com o maior realismo possível. Um caminho que começa a se inverter em “As Feiticeiras de Salem” (1960), uma controversa encenação do texto de Arthur Miller.

O encontro com Nelson Rodrigues também foi um marco e o autor pairou como obsessão para Antunes pelo restante de sua carreira. Seu primeiro contato com essa dramaturgia se deu com “A Falecida” (1965). E irá frutificar em outras obras como “Nelson Rodrigues – Eterno Retorno” (1981), “Nelson 2 Rodrigues” (1984) e “Paraíso Zona Norte” (1989). Nelas, o diretor situou o grande dramaturgo no lugar que lhe é devido. Retirou-lhe do terreno das comédias de costume, chave em que muitos ainda leem suas criações, para situá-lo no campo mítico. Para o crítico Sábato Magaldi, Antunes Filho conseguia “colocar Nelson na altitude dos gregos”.

Em meio a tão vasta produção, também merece um olhar cuidadoso sua incursão pelas tragédias clássicas: caso de “Fragmentos Troianos” (2000) e “Medeia” (2001). Ainda que não tenham sido unanimemente bem-recebidos, os espetáculos marcariam o seu vocabulário estético e vinham depois de um traumático episódio para o diretor: a saída do ator Luís Melo.

Desde “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” (1986), uma aplaudida versão da obra de Guimarães Rosa, Antunes via em Melo o ator com o qual levaria seu método a uma potência máxima. Em “Drácula e Outros Vampiros” (1996) foi obrigado a retroceder em muitos de seus avanços e a buscar novas estratégias para continuar. Mergulhou nas atividades do CPT e de lá a sairia a série Pret-a-Porter. Seria o caminho para Antunes sistematizar suas práticas estéticas e perseguir o seu sonho maior: ter o ator como senhor absoluto do palco.

Posso ajudar?