Há mistérios em Egberto Gismonti que seus 70 anos podem ajudar a desvendar. Se sua música é complexa e para iniciados, o que fazia com que as crianças que o viam em uma praça na cidade de Amarante, ao Norte de Portugal, dançassem em cirandas e de mãos dadas? Se seu pensamento musical é intrincado, o que levava jovens leigos entrevistados pelo Estado na ocasião, no festival Mimo Portugal de 2016, a viajar de outras cidades apenas para assisti-lo?
Egberto vai ao Bourbon Street no próximo domingo, sua primeira passagem pela casa de Moema. Sobre o show, como de costume, ainda não definiu repertório. Nesta entrevista, ele diz que nunca viajou tanto pelo mundo para mostrar sua música. “Tenho a impressão de que os anos vividos me abrem as portas da liberdade para experimentar tudo que ainda não experimentei. Assim tenho vivido nos últimos tempos.” E diz não fazer balanço de carreira, mas entrega uma rápida contabilidade: “Às vezes me questiono porque razão cheguei a 70 discos, 27 balés, 32 filmes, 13 especiais de TV, 14 peças de teatro, 6 exposições de artistas como Franz Krajkberg, Akiko Fujita, Antonio Peticov, Marilda Pedroso…”
É raro vê-lo em casas menores como o Bourbon Street. O tamanho do espaço influencia de alguma forma na sua apresentação?
Ainda não havia estabelecido esta relação. Talvez sim, por coincidência eu estava considerando a possibilidade de levar violões e flautas para o palco do Bourbon Street ou de fazer uma apresentação de piano tocando as músicas temas dos filmes que fiz e mais gostei. Por exemplo, com Ruy Guerra fiz algumas fábulas do Gabriel García Márquez. Poderia tocar os temas desses filmes, sem considerar improvisações mas levando em conta tocar bem, com expressão ao limite do que o piano me possibilita. Se isso acontecer, terei feito uma apresentação de 12, 13 músicas bem executadas sem nenhuma intenção de mágica ou pirotecnia. Se for de violão e flautas, talvez usar o tamanho menos do espaço e tocar sem amplificação. Ainda não sei, mas, por coincidência estava pensando nestas ideias descritas acima.
Egberto, 70 anos. A efeméride faz com que você pense em um balanço? Se fosse traçar uma linha do tempo que começasse na Carmo (RJ) de 1947, quais os três fatos dos quais mais se orgulharia?
Pergunta praticamente impossível de responder porque ainda não estou pensando em balanço, tenho muitas dívidas à cumprir com a música, não tenho direito ao balanço, é muito cedo. De qualquer forma, três fatos dos quais mais me orgulharia seria simples de responder: ter nascido no Carmo, ser Carmense; pertencer às famílias Gismonti e Amim (ser italiano e árabe dentro do paletó brasileiro); ser mais um músico da família que conseguiu juntar amigos através da música.
Você acredita sofrer algum preconceito quando o consideram um autor cerebral?
Há pouco tempo alguém fez um comentário sobre um determinado livro ou jornal ou apostila que tratava de acontecimentos inusitados na arte, especificamente na música. Me disse, “você está lá com a música Bodas de Prata, que foi gravada pela Sarah Vaughan, Wayne Shorter, Jan Garbareck, Charlie Haden, Mauro Senise, Nivaldo Ornelas, Jane Duboc, você mesmo, Yo Yo Ma, etc”… Realmente aconteceram coisas contraditórias que construíram minha vida pessoal e profissional: o período de ano e meio que trabalhei como arranjador da Marie Laforêt (atriz e cantora de música popular francesa), estudei com Mme. Boulanger e Mr. Jean Barraqué. Tenho participado direta e indiretamente de discos, filmes, peças de teatro, exposições, especiais de TV, etc., que são de pontos extremos, as vezes contraditórios, sem que causem nenhum constrangimento para qualquer das partes envolvidas. Não estarei exagerando se disser que a vida tem sido benevolente comigo. Ainda sobre sua questão, as vezes me questiono porque razão cheguei a 70 discos, 27 balés, 32 filmes, 13 especiais de TV, 14 peças de teatro, 6 exposições de artistas como Franz Krajkberg, Akiko Fujita, Antonio Peticov, Marilda Pedroso…
Há pouco você dizia estar pensando seriamente em ir morar no exterior. Essa vontade permanece? Ou já mudou de ideia?
Difícil resposta… Na realidade continuo cansado do Brasil que teima em não possibilitar paz, segurança e alegria para criarmos nossos filhos de forma segura, podendo desejar sonhos bons que possibilitem finais felizes. Como a maioria dos brasileiros, estou envergonhado com tanta safadeza mostrada e provada todos os dias nos meios de comunicação. A pergunta da vez é porque tanto roubo, tanta propina, tanta cara de pau e desprezo com o dinheiro público, com a falta de consciência de que precisamos dar um passo à frente para nos aproximarmos da realidade de sermos uma nação com equilíbrio social, respeito às diferenças, consciência na nossa miscigenação… Meu caro Julio, estou cansado da falta de certeza para sair de casa e voltar feliz. A vontade de sair é imensa! Pra onde? É o problema… Mantenho as dúvidas citadas por você na pergunta e acrescento que talvez, não tenho certeza, a nossa saída seja voltarmos para nossos interiores (geográficos, físicos, espirituais, poéticos, musicais, sociológicos, linguísticos, dialéticos, teatrais, cinematográficos, sonhador, inventor, criador, pensador, etc, etc…)
Você ainda cria com a mesma intensidade ou o tempo leva o ímpeto criativo e o artista tende a só colocar no papel aquilo que lhe parece essencial?
Um pouco de tudo… No meu caso, a maior diferença de ontem para hoje é a responsabilidade de fazer corretamente o que já foi aprendido. De resto, do não aprendido, a mesma dúvida e o mesmo ímpeto de correr atrás das melhores respostas, e, sobretudo, das melhores perguntas.
Há um cenário incrível de novos músicos do meio instrumental. Jovens lançando discos e fazendo shows memoráveis, mesmo sem espaços de mídia. O momento já foi comparado à efervescência do Beco das Garrafas dos anos 60. Percebe isso?
Comparável ao Beco das Garrafas dos anos 60 eu não sei, eu não morava no Rio e não participei deste movimento. No entanto, tenho visto e conhecido um bocado de músicos jovens cheios de ideias, pensamentos, certezas, como gerações lá atrás que com essa idade parecia imortal! Lindo de ver… Se os espaços forem amplificados para que essa geração acerte e erre à vontade, poderemos sonhar com futuro melhor. Proponho isso, vamos sonhar que “eles” acharão um caminho para driblar a safadeza.
Egberto Gismonti
Bourbon Street
Domingo (27), 20h30 (casa abre às 18h). Rua dos Chanés, 127 – Moema. Fone: 5095-6100
Ingressos: R$ 165 e R$ 195
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.