Em seis décadas como compositor, produtor e agitador cultural, o poeta carioca Hermínio Bello de Carvalho trabalhou pela preservação do legado de pilares da música popular, como os parceiros Cartola e Pixinguinha, Ismael Silva, Jacob do Bandolim, Herivelto Martins e Nelson Cavaquinho. Gravando em fitas cassete depoimentos e reuniões musicais, registrando histórias em textos, produzindo discos, criando e dirigindo shows e organizando homenagens, ele espalhou o que chama de “resíduos culturais” desses artistas, ajudando a perpetuar a obra deles.
Aos 81 anos, agora é Hermínio o objeto de estudo e de reverência dos mais jovens.
Nesta quinta, 14, com abertura da amiga Fernanda Montenegro, estreia no Centro Cultural Correios, no Rio, a série de oito shows Hermínio Bello de Carvalho, aos 80: Uma Rosa para o Poeta, a reunir, entre intérpretes e instrumentistas de valor, duas vozes de sua adoração, Alaíde Costa e Áurea Martins, e as cantoras novatas Gabi Buarque e Marina Íris. O roteiro do jornalista e cantor Pedro Paulo Malta inclui os sucessos Alvorada (com Cartola e Carlos Cachaça), Chão de Esmeraldas (com Chico Buarque), Mas Quem Disse Que Eu te Esqueço (com Dona Ivone Lara), Sei Lá, Mangueira e Timoneiro (com Paulinho da Viola) e Pressentimento (com Elton Medeiros) e músicas pouco conhecidas, parcerias recentes como Meu Vadio Coração (com Lucas Porto), Penúltimo Desejo e Algas. Essas duas, com Vidal Assis, principal parceiro atual – ele está gravando um CD com composições dos dois.
“Hermínio jogou o holofote sobre esses grandes nomes e, agora, quando o foco é ele, a luz chega também a esses artistas. Essa manta hermínica cobre toda a série de shows”, diz Malta, que propôs quatro recortes de sua trajetória, com dois shows para cada um: o lendário espetáculo Rosa de Ouro (1965), esta sua fase mais conhecida, em que compôs com Cartola e Paulinho; um olhar para suas divas, Elizeth Cardoso, Zezé Gonzaga, Araci Cortes e Marlene; sua ligação com o choro, personalizada pela amizade e parceria com Pixinguinha e Jacob do Bandolim – participam desses shows Joyce e Zé Renato – e, por fim, as novas relações musicais.
“Trabalhei a vida inteira prestando homenagens. Essas datas redondas são oportunidades de sensibilizar as pessoas. Fiquei muito emocionado ao saber dos shows. É muito bonito, porque não sou só eu, sou eu com os parceiros. Não é a homenagem pela homenagem, é preciso deixar os resíduos”, agradece Hermínio, que recebeu o jornal O Estado de S. Paulo segunda, 11, no apartamento em que vive no Edifício Pixinguinha, em Botafogo.
A perna direita está com baixa oxigenação, o joelho, combalido, a memória não é boa. “Eu não sei mais contar a minha vida, mas coisas importantes aconteceram. Hoje, o que a gente vê é a cultura sendo dizimada pelo binômio preguiça-incompetência, que fez com que o Ministério da Cultura chegasse ao estado em que está”, lamenta Hermínio, que por ocasião da criação da Fundação Nacional de Artes, em 1975, pôs na estrada o Projeto Pixinguinha, de circulação nacional de shows, com foco em formação de plateia.
Para tirar dúvidas sobre detalhes de sua vida artística, ele recorre a Timoneiro: Perfil Biográfico de Hermínio Bello de Carvalho. O livro, que saiu pela Casa da Palavra há dez anos, tem histórias desse carioca, nascido a 28 de março de 1935, em Olaria, mudando-se depois para Santa Teresa, permeadas por seu amor pela música e os músicos e sua capacidade produtiva e aglutinadora.
As narrativas comumente associadas a ele, como a “descoberta”, em 1963, de Clementina de Jesus, quando ela cantava na Igreja do Outeiro da Glória (dois anos depois, a “Rainha Ginga” seria estrela de Rosa de Ouro) – “eu não a descobri; só parei para prestar atenção nela” – e o empurrão ao jovem bancário Paulinho da Viola, apresentado por Hermínio a Cartola (“ele foi o primeiro sinal de alerta que tive, a primeira pessoa que me convidou para parceiro”, escreveu Paulinho por ocasião dos 60 anos do amigo), essas ele não esquece. São relatos hoje buscados por jovens músicos, a quem ele transmite a tal “arte de prestar atenção”.
Hermínio tem prontos três livros, crônicas, poesias e uma reunião de memórias de outros artistas. Das circunstâncias em que compôs raridades até hoje inéditas, como a modinha Que a Dor de Amar É Tanta (com Pixinguinha), o samba Desvivendo (com Ataulfo Alves), ambas dos anos 60, duas músicas sem título com Cartola, de 1980, e outras com Candeia e Paulinho, ele não faz ideia.
Essas letras constam de páginas amareladas de cadernos originais que compõem o acervo que Hermínio amealhou. Parte, fotos, fitas cassete, documentos, 4.000 discos, foi doada ao Museu da Imagem e do Som, do governo do Estado; a biblioteca de MPB ele destinou à Escola Portátil de Música, projeto da cavaquinista Luciana Rabello com o qual colabora desde seu início, há 16 anos. Na TV Brasil, Hermínio tenta levantar o paradeiro de registros de programas que produziu na extinta TVE nos anos 1970, com artistas como Dorival Caymmi, Aracy de Almeida e Clementina.
“Tenho apego material e animal por esse acervo. Doei porque já são 81 anos, dois cânceres, um enfarte, um AVC… Existem coisas preciosas. Estou muito preocupado porque não sei se o Estado, nessa crise financeira, vai cuidar e divulgar. Isso me machuca”, conta, citando gravações de Tom Jobim – “ele mostrando Inútil Paisagem pela primeira vez foi a coisa mais linda”. Segundo a presidente do MIS, Rosa Maria Araujo, o acervo está quase todo digitalizado e disponível a consulta. “É natural a preocupação. O acervo é importantíssimo, e terá destaque no novo MIS (o prédio, na praia de Copacabana, está sendo finalizado), além de ficar aberto a pesquisadores”, garante.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.