Zuza Homem de Mello chegou antes dos 25 anos à Juilliard School, no centro do mundo musical de Nova York, naquela segunda metade dos anos 1950, com a alma transbordando. Enfim, os pais entendiam que o curso de engenharia não passava de um acidente e que a música que o absorvia em madrugadas cada vez maiores, a razão de sua existência. “Ok, percebemos que você tem trabalhado com música”, disseram depois que ele chegou em casa às 2h15 da manhã pela décima quinta vez. “Se é assim, prepare-se. Você vai estudar.” A excelência da Juilliard, em Manhattan, a mesma que formaria Itzhak Perlman, Nina Simone, Yo-Yo Ma e tantos outros, não deixava de ser assustadora. Zuza respirou fundo, sentou-se para a primeira aula e ouviu a frase que valeria pela vida. “Bom dia. Aqui na Juilliard nós não vamos ensinar vocês a tocar, mas a ouvir. Bem vindos.”
Os mais de 60 anos seguintes na vida de Zuza está ligado a essa frase. Ensinar as pessoas a aprender a ouvir. Aprender das cantoras a ouvir a voz de fora e a de dentro; dos pianistas, os solos feitos e os imaginados; dos baixistas, o suingue e a humildade; dos bateristas, o som e o silêncio. E ouvindo o que se ouve e o que se sente, perceber que por trás da música existe ou não o único elemento que a torna legítima do samba ao jazz, dos terreiros aos salões, das vilas aos palácios: a verdade de quem a faz.
Depois de respirar do mesmo oxigênio de Duke Ellington, Thelonious Monk, John Coltrane e Billie Holliday, pessoas que viu atuar em clubes de Nova York, Zuza voltou ao Brasil inspirado a inspirar. Tornou-se responsável pela captação do som e da alma dos programas musicais em um momento único da TV Record e um obstinado caçador de memórias próprias e de terceiros. Escreveu livros referencias como “A Era dos Festivais – Uma Parábola”, de 2003; “Eis Aqui os Bossa Nova”, de 2008; “Copacabana”, de 2017; e, em dois volumes, “A Canção no Tempo”, com Jairo Severiano.
Seria então, quando comemora 85 anos, o momento de se deixar homenagear em um documentário exaltação? Colocar pessoas a desfilar comentários a seu respeito (o que essa página faz ao lado)? Narrar do bom berço em 1933 às homenagens por se tornar em 2018 membro da Academia Paulista de Letras? Alguns usariam partículas da mesma biografia para isso, mas com Zuza, consciente de onde o pesquisador, crítico musical e jornalista deve sempre estar, não funciona assim. Zuza Homem de Jazz, o que poderia ser um documentário biográfico legítimo, é mais um serviço que Zuza propõe deixar para, 60 anos depois da Juilliard, ensinar as pessoas a aprender a ouvir.
Concebido por sua mulher, Ercília Lobo, com direção de Janaína Dalri, coordenação de conteúdo do próprio Zuza e realização do Canal Curta!, o filme de 90 minutos inverte o eixo dos documentários exaltação e traz Zuza no instigante papel de “coadjuvante principal” de uma vida de servidão. Sua melhor homenagem é mostrá-lo em ação. Ele entrevista Letieres Leite não para falar de suas virtudes, mas para discutir o receio dos brasileiros em dizer que fazem jazz e ouvir que “quando estiver triste, ouça Moacir Santos.” Fala com o pianista André Mehmari para apontar as semelhanças entre Pixinguinha e o jazz americano e analisar os dois tipos de improviso: aqueles realmente criativos e outros tantos pseudo originais mas, na verdade, pré-fabricados. E ouve de Egberto Gismonti sobre a importância da formação cultural mais abrangente de um músico. Se ele não se abrir à literatura, às artes plásticas, ao cinema, ao teatro e aos amigos, fará sempre uma música menor do que poderia fazer. E isso mesmo quando for um artista consagrado.
Zuza vai aos Estados Unidos buscar seu passado. Encontra velhos amigos do jazz, como Bob Dorough, Gary Giddins, Steve Ross, Eric Comstock, Wynton Marsalis e Maria Schneider. Um final desses que a vida decide derrubando os planos do diretor torna tudo mais comovente. Depois de ter sua primeira exibição no Festival de Cinema do Rio, neste domingo, 4, haverá uma sessão de lançamento em São Paulo no próximo dia 30, às 20h, no Instituto Itaú Cultural (Av. Paulista, 149).
Os 85 anos de Zuza não agem em suas células como costumam agir na compleição dos saudosistas. “Eu fui feliz e sabia”, ele diz, logo no início do filme. Sabia e sabe. Ao lado de Ercília, em um desses encontros de almas que o universo custa cem anos a deliberar, é um incansável frequentador de plateias de shows, cinemas e exposições. Senta-se na plateia com o mesmo entusiasmo para ver Ney Matogrosso e Lívia Nestrovski. Seu livro “Copacabana”, lançado no final de 2017 sobre a era do samba-canção, rende até aqui quase um ano de palestras e cursos. Uma série sobre Noel Rosa, “O Tempo e a Música”, foi exibida pelo canal Art 1 em fevereiro. Veio o reconhecimento da Academia Paulista de Letras e, agora, uma nova empreitada. A partir do dia 7, a virtual Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, passa a mostrar uma série de 50 programas sobre a obra de Duke Ellington. Zuza gravou um a um movido pela inegociável ideia de que forte é o ser que sabe ouvir. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.