Peter Dirk Siemsen e João Bulhões são avô e neto. Um tem 85 anos, é um dos advogados mais respeitados (e antigos) do País e membro da Corte Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês), instância máxima do direito esportivo. O outro, aos 22, faz campanha olímpica para estar nos Jogos do Rio e é favorito para representar o Brasil na classe Nacra17, na vela. O Bolsa Atleta, principal vitrine esportiva do governo federal, porém, paga ao avô o dobro do que recebe seu neto. Nos próximos 12 meses, o octogenário receberá um total de R$ 22.200 para que “se dedique, com exclusividade e tranquilidade ao treinamento e competições”, conforme explica o ministério do Esporte ao apresentar o programa, que tem como prioridade beneficiar o atleta de alto rendimento em modalidades olímpicas.
O nome não engana: Peter Siemsen é pai do homônimo presidente do Fluminense. Está entre os atletas contemplados no Bolsa Atleta deste ano porque foi o comandante do Ângela Star VI, vice-campeão do Campeonato Sul-Americano da classe ORC 500, de vela de oceano, disputado em julho do ano passado, em Ilhabela (SP). Diferentemente da vela olímpica, na ORC não há um padrão de barco. É como brincadeira de criança: os menores largam antes e os maiores tentam alcançá-los. Um barco pode ter quatro ou 15 tripulantes. No caso do Ângela Star, 11 ou 12.
“Geralmente quem comanda a brincadeira (o barco) é o mais velho, que tem a grana para comprar o barco. Deve ter alguns que se aproveitam dessa oportunidade para pegar dinheiro do governo sem necessidade”, disse um membro do Conselho Técnico da CBVela. Quando soube que o “aproveitador” é Peter, uma das 24 pessoas que já receberam a honraria máxima da vela internacional, esse cartola voltou atrás. “Não é possível, o Peter é contra (o Bolsa Atleta). Ele jamais faria isso. Ele não precisa. Deve haver algum engano. Impossível.”
A mesma reação tiveram praticamente todas as fontes ouvidas pela Agência Estado. “Deve ser um homônimo”, disse uma pessoa do Dannemann & Siemsen Advogados, escritório de reconhecimento internacional do qual Peter é sócio, no Rio. Mas não há nenhum engano. A reportagem procurou o velejador, que estava incomunicável em um congresso no exterior. Falou então com um membro da sua família, que confirmou a informação, alegando que Peter não recebe a bolsa ilegalmente, nem usa da sua influência para tê-la.
Ao que tudo indica, entretanto, a bolsa é sim ilegal, porque a CBVela aponta um evento que não respeita a legislação. Para que uma competição seja apta para o Bolsa Atleta internacional, a lei exige a participação de representantes de no mínimo cinco países – o que muito provavelmente não aconteceu no Campeonato Sul-Americano de ORC (lê-se orqui).
Tanto é que, questionada via assessoria de imprensa na quarta-feira, a CBVela não enviou as súmulas do Sul-Americano (inexiste uma confederação sul-americana), ainda que a família de Peter tenha se empenhado em obtê-las. Mesmo a organização da Semana de Vela de Ilhabela/2013 não soube dizer se havia a participação de cinco países. Em 2012, apenas duas nações competiram (Brasil e Argentina). Em 2014, três (Uruguai, além de Brasil e Argentina). A assessoria de imprensa do evento não se lembra da participação de atletas de outras nações que não as três citadas em 2013.
Em defesa de Peter, o fato de que ele realmente foi comandante do Ângela Star em Ilhabela e que ele nada teve a ver com a indicação do evento como apto pela CBVela – uma vez válida a competição, ele tem direito à Bolsa Atleta. Até porque, de acordo com um membro da tripulação, o veterano usa sua experiência para liderar o barco, do qual é proprietário. Mesmo sem colocar a mão na massa (na vela, no caso), cumpre seu papel de estrategista. Atrás do timão, ele levou a equipe ao vice-campeonato sul-americano. Sob seu comando, cerca de 11 pessoas (inclusive crianças, como mostram fotos da competição). As súmulas não costumam registrar os integrantes do barco, apenas o comandante.
CRISE NA VELA – A indicação ilegal de eventos como o Sul-Americano de ORC para o Bolsa Atleta pode inclusive fazer com que Marco Aurélio Sá Ribeiro deixe o cargo de presidente da CBVela. Repercutiu muito mal, dentro da modalidade, uma denúncia publicada pela revista Istoé 2016, no último fim de semana, mostrando que o dirigente fraudou o Bolsa Atleta ao criar um falso “Campeonato Brasileiro de Vela”.
Esse suposto evento teve mais de 60 etapas (os Brasileiros de Classe, legítimos), com a participação de 14 estados. Assim, se encaixaria no critério para uma competição ser apta ao programa: ter participantes de cinco estados ou países. A maioria dos Brasileiros de classes não-olímpicas não cumpriu esse requisito individualmente. À revista, o ministério disse: “A prova precisa ter mais de cinco competidores ou equipes de estados diferentes”. Mesmo assim, concedeu Bolsa a atletas de provas que não tiveram quatro ou menos estados.
Na opinião de Lars e Torben Grael (treinador-chefe da seleção) e da maioria absoluta das pessoas que criaram a CBVela há dois anos, para moralizar a modalidade o Bolsa Atleta deveria ser concedido apenas para 29 classes/provas, entre olímpicas, pan-americanas, adultos e base. A decisão tomada pelo Conselho Técnico, porém, foi ignorada pela cúpula da entidade, que enviou documentação ao ministério com o falso Brasileiro de Vela e indicou, depois, eventos como o Sul-Americano de ORC, mesmo fora da lei.
“Acho que a vela oceânica não deveria ter Bolsa Atleta. É uma categoria mais cara, exige deslocamento da equipe, remonta investimento maior. Quem tem esse investimento não precisa de Bolsa Atleta”, diz Lars Grael, nada mais nada menos do que o comodoro (presidente) da Associação Brasileira de Vela Oceânica (ABVO) e presidente da Comissão Nacional dos Atletas. É, assim, o maior interessado em apoio aos atletas da vela oceânica. Lars, que nunca se inscreveu para o programa (“Tenho 50 anos e uma perna só, vou oferecer o que para o esporte olímpico?”), é um dos que está muito incomodado com a fraude promovida pela CBVela que ele ajudou a levantar.
Assim como Lars, um sem número de atletas da vela rejeita o Bolsa Atleta, por julgar que os recursos devem ser usados por quem precisa, como João Bulhões, que recebe bolsa da categoria nacional, de R$ 925, porque foi bronze no Brasileiro Júnior de Snipe. Não entra na bolsa internacional porque foi sexto colocado no Sul-Americano de Nacra17, quando ainda se acostumava ao novo catamarã olímpico – precisaria ter ficado entre os três primeiros.
Já seu avô será agraciado com 12 parcelas de R$ 1.850. O octogenário atleta, considerado o mais velho velejador do País, também tem no currículo a Medalha Mérito Tamandaré, a Ordem do Mérito Naval (oferecidas pela Marinha) e o troféu Beppe Croce (oferecido pela Federação Internacional de Vela às 24 pessoas que mais contribuíram para o desenvolvimento da modalidade no mundo). No direito, é um dos mais reconhecidos especialistas do mundo em propriedade intelectual.