Nathalia Timberg é, antes de tudo, uma mulher forte. Ainda com os movimentos discretamente limitados por uma queda sofrida há alguns meses, a atriz dribla seus 87 anos ao deixar o conforto de seu apartamento no Rio para vir a São Paulo, na semana passada, quando se reuniu com representantes de entidades que podem receber seu próximo espetáculo, Chopin ou o Tormento do Ideal. Não se trata de um ato desonroso, mas, em sociedades mais sensíveis à arte, Nathalia é quem seria procurada por empresários.
Afinal, ainda é válida a observação feita, nos anos 1960, por Décio de Almeida Prado, crítico do jornal O Estado de S. Paulo e um dos principais da história do teatro brasileiro: “Nathalia Timberg confirma a sua grande classe de intérprete: é a atriz mais europeia que possuímos, no sentido de dar uma impressão de escola, de técnica, de refinamento. Sabe como andar, como gesticular, como usar um vestido de gala – mas não fica nestas qualidades de mulher da sociedade. É engraçada, mordaz, quando o deseja, e, nas últimas cenas (Décio se referia ao espetáculo Meu Querido Mentiroso), sem recorrer a mudanças demasiadamente marcadas de voz ou de gestos, deixa transparecer com sutileza e emoção todo o desgaste físico da velhice”.
A segurança vem de uma carreira sólida, que já soma 62 anos. Nathalia participou da montagem de textos clássicos contemporâneos, desde os franceses Marguerite Duras e Sartre aos americanos Arthur Miller e Eugene ONeill. Encenou também trabalhos de dramaturgos nacionais, como Nelson Rodrigues (A Senhora dos Afogados) e Dias Gomes (participou da célebre encenação de O Pagador de Promessas, com direção de Flávio Rangel, no TBC, em 1960). Um currículo respeitável e construído a partir de uma máxima que até hoje direciona seus passos artísticos: “Todo teatro é espetáculo, mas nem todo espetáculo é teatro”.
É por isso que ela se empenha agora na montagem de Chopin ou o Tormento do Ideal, peça que, por enquanto, tem apenas apresentações garantidas entre os dias 15 e 17 de setembro, no festival Porto Alegre em Cena. “Trata-se de um concerto da palavra”, define Nathalia, que volta a experimentar o prazer de unir teatro e música clássica – no ano passado, ela encenou 33 Variações, peça do venezuelano Moisés Kaufman que gira em torno das 33 variações criadas por Beethoven, no século 19, para a valsa do compositor austríaco Anton Diabelli.
“Se lá o enredo traçava o paralelo entre a história de uma musicóloga que luta contra a esclerose e o genial autor que enfrenta a surdez, aqui são iluminados 20 anos da vida e obra de Chopin a partir de cartas e declarações de sua amante”, conta Nathalia que, pela primeira vez em sua carreira, vai interpretar um personagem masculino.
Concebido pelo ator e autor Philippe Etesse e o pianista Erik Berchot, ambos franceses, o espetáculo foi traduzido pela atriz, que convidara o escritor Marco Lucchesi, que não pôde assumir a empreitada. “Decidi, então, cuidar da versão, pois já estava tocada pela história. Chopin pouco se apresentou em público (foram 33 vezes) porque seu temperamento romântico não permitia”, observa Nathalia. “Aliás, os Beatles, talvez os últimos românticos dos tempos modernos, também deixaram de se apresentar em público simplesmente porque não se ouviam.”
Em sua jornada, a atriz conseguiu atrair dois colaboradores de peso: um mais recente, o diretor José Possi Neto, e outra mais antiga, a pianista Clara Sverner. Possi se encantou com o texto, especialmente com o clima poético que envolve um personagem dividido entre um doloroso cotidiano e um ideal inatingível. É quase um monólogo, diz o encenador, cuja concepção cênica será a mesma de um concerto.
Daí a importância da presença de Clara Sverner, que apresentará ao vivo peças de Frederic Chopin – especialmente dois prelúdios escolhidos por ela. “A música interpretada por Clara vai reforçar os detalhes da insatisfação do compositor, que é algo que me encanta”, conta Nathalia, repetindo a parceria com a pianista, iniciada em 33 Variações, espetáculo dirigido por Wolf Maya, no ano passado.
“Ao final, o público aplaudia com lágrimas nos olhos”, orgulha-se a atriz que, à frente do mesmo 33 Variações, inaugurou, em janeiro de 2016, um teatro com seu nome, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. “Foi uma homenagem do Wolf, da qual ainda não me refiz totalmente”, conta Nathalia, para alfinetar em seguida.
“Mais que isso, o importante é ter um ponto de resistência encravado em uma área que cultiva mais a diversão leve.”
Nathalia é o símbolo de uma resistência por um teatro de qualidade, abraçada por outros artistas de idêntico quilate, como Fernanda Montenegro, para se lembrar apenas de um nome. É o que alimenta sua disposição para vir a São Paulo e se reunir com representantes de importantes pontos culturais da cidade – a reportagem apurou que Sesc e Centro Cultural Banco do Brasil já sinalizaram positivamente, prevendo a estreia para outubro ou novembro. Uma notícia aguardada por Nathalia, sabedora de que a experiência, essa negociação consciente entre o eu e o mundo, é uma característica irredutível da vida, e não há experiência mais intensa do que a arte.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.