Charles Aznavour não esquece de nada. Aos 92 anos, ativo como poucos, lúcido como tem sido cada vez mais raro encontrar, o compositor e intérprete francês de origem armênia se prepara para levar ao Brasil sua mais recente turnê oferecendo ao público o que dele se espera: nostalgia, em pequenas doses de poesia. A reportagem acompanhou em Paris o show que o autor de La Bohème e Formidable apresentará em São Paulo, em 16 de março, e no Rio, dois dias depois, e comprovou a vitalidade de um dos mestres da palavra cantada – um dos últimos de sua estirpe na música mundial.
Aznavour é para a canção francesa aquilo que Frank Sinatra foi para a americana: um mito. E, como Blue Eyes, sua vida pessoal fascinou tanto quanto provocou polêmica.
Nascido em 22 de maio de 1924 em Paris, filho de pais armênios em fuga da violência e do genocídio, recém-chegados e abrigados na França, o jovem Charles Arzanourian jamais deixou de lembrar sua origem e a influência da cultura de seus antepassados na sua arte. Talvez em parte por isso tenha sido tão agredido no início de sua carreira pela crítica francesa, incansável na reprovação à sua voz rouca, em que poucos apostavam. Ao longo de décadas, Aznavour conviveu com a desconfiança de uma certa crítica, mas pouco a pouco o público acabou conquistado. O resultado de uma carreira vitoriosa se vê hoje, quando o cantor sobe ao palco ao lado de sua orquestra, Formidable, dirigida por Eric Wilms e composta por nove músicos, dentre os quais a corista Katia, sua filha. Em mais de duas horas de espetáculo, Aznavour hipnotiza pouco a pouco sua audiência em direção a um final apoteótico, que emociona os fãs de carteirinha e não deixa nenhum de seus espectadores indiferente.
A receita de sucesso desse show passa não só pela encenação sóbria e elegante, nem apenas pela voz rouca e fascinante do cantor, mas sobretudo por sua personalidade fascinante. Aznavour canta sobre o tempo passado, mas suas letras dizem muito sobre o presente. Em Paris, a abertura de seu concerto aconteceu com Les Emigrants, um de seus clássicos, que após a crise dos refugiados enfrentada pela Europa em 2015 ganhou um teor político inegável: “Comment crois-tu quils sont venus?”, interpela, respondendo a seguir: “Ils sont venus, les poches vides et les mains nues”. (Em tradução livre “Como você acha que eles vieram”, interpela, respondendo a seguir: Eles vieram, os bolsos vazios e as mãos nuas.”)
À reportagem, Aznavour disse ter escolhido a canção “antes de mais nada porque é boa”, mas também pela mensagem que sua letra porta em um momento de crescimento do populismo. “Eu sou um homem livre. Digo palavras que os outros não ousam”, argumentou.
Mesmo para os fãs mais apaixonados, o concerto terá surpresas. Entre mais de 20 canções que Aznavour entoa, uma dezena faz parte das preferidas do próprio cantor, e não necessariamente as mais populares. “O público brasileiro terá direito ao que eu chamo de descida ao inferno. É obrigatório”, brinca, referindo-se ao set list. “Eu faço as pessoas me acompanharem lentamente. Não espero uma recepção calorosíssima, porque cabe a mim aquecer o espetáculo e acabar o show em alta”, diz também.
Para tanto, o repertório partirá de músicas como Je nAi Pas Vu le Temps Passer, Tespero, Aspetto te, Paris au Mois dAoût, Nostalgies, La Vie Est Faite de Hasards e Avec Un Brin de Nostalgie, antes de chegar a clássicos como Mes Emmerdes, Hier Encore, Comme Ils Disent, Emmenez-Moi e La Bohême. Com um pouco de sorte, o público brasileiro terá direito a Formidable, que não entrou na lista em Paris.
Amante da palavra escrita – está encantado pelo Nobel de Literatura a Bob Dylan -, apaixonado pela língua francesa e seus poetas, Aznavour compôs mais de 1,4 mil canções, transformadas em mais de 60 dias – um manancial infinito para escolher um set list. A seleção que apresentará, diz, reúne não só as letras que ele próprio considera mais refinadas, inteligentes e poéticas. “Eu não sou um poeta, sou um escritor de canções. Mas há um gosto de poesia nessas composições”, afirma, lembrando de outros que se inspiraram do mesmo modo. “Eu não sou o único. Nas músicas de George Brassens ou de Vinicius de Moraes não se poderia mudar uma vírgula”, entende, tecendo elogios “ao peso, ao sabor, ao ritmo e à cor” da música brasileira.
Os públicos paulistano e carioca verão um Aznavour em ótima forma, elegante, espirituoso, brincalhão, franco e carismático. Uma bela oportunidade para testemunhar o trabalho do astro que não esquece o passado – e que o futuro não vai esquecer.
CHARLES AZNAVOUR
Espaço das Américas. Rua Tagipuru, 795, Barra Funda. Informações: 4003-1212. Dia 16 de março, às 22h. De R$ 150 a R$ 1.000.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.