Na manhã de uma terça-feira, sob o habitual e infernal calor de Bangu, Otto Enrique Trepte abre a porta de seu quarto para, a passos lentos, auxiliado por um andador, chegar até o sofá da sala da casa onde mora. Após colocar os óculos para observar alguns LPs seus levados até ele pela reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, ele comenta: “Quero que Deus me cegue se eu estiver falando mentira. Eu não sei cantar, não sou cantor. Não sou compositor, não sou nada, só fiz umas bobagenzinhas aí”.
A modéstia tenta esconder que, conhecido como Casquinha, ele é um dos maiores patrimônios não apenas da Portela, mas do samba e da música brasileira. E essas “bobagenzinhas” a que ele se refere foram gravadas por nomes como Candeia, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Clara Nunes, Nara Leão e Elza Soares.
Aos 92 anos, completados em dezembro, ele fala com orgulho de seu primeiro DVD, Casquinha da Portela – O Samba Não Tem Cor. Com direção do cavaquinista, cantor e compositor Mauro Diniz, o tributo foi gravado em março deste ano no Portelão, em Oswaldo Cruz, com patrocínio da Prefeitura do Rio.
Com uma memória vacilante, justificada pela idade avançada, Casquinha contou com a ajuda do diretor musical do DVD e do pai de Mauro, Monarco, outra lenda viva do samba e parceiro do homenageado na Velha Guarda da Portela, para levantar o repertório. “Foi muito emocionante fazer este DVD. O Casquinha está com 92 anos e não tinha ainda um registro desse. Procuramos convidar artistas de quem ele gosta muito para participar”, comenta Mauro Diniz.
Os convidados marcaram presença em sete das 18 faixas do DVD. Monarco gravou O Ideal É Competir, samba de Casquinha e Candeia registrado anteriormente nos discos Bebadosamba (1996), de Paulinho da Viola, e Casquinha da Portela (2001), produzido por Moacyr Luz e Zé Luiz Soares. Mauro Diniz interpretou Tantos Recados, outra parceria do homenageado com Candeia, e Zeca Pagodinho deu voz a Escurinho Frajola, só de Casquinha. O DVD ainda contou com Marquinhos do Pandeiro, em Gorjear da Passarada, Beth Carvalho, nos clássicos O Recado, de Casquinha e Paulinho da Viola, e A Chuva Cai, parceria do compositor com outro mestre da Velha Guarda da Portela, Argemiro.
Amor Interesseiro foi interpretada por Monica Trepte, filha de Casquinha, no DVD que também traz um dos sambas mais conhecidos do compositor, Falsas Juras, outra parceria dele e de Candeia.
Com Antônio Candeia Filho, Waldir 59 e Bubu da Portela, Casquinha também compôs o samba enredo Brasil, Pantheon de Glórias, com o qual a Portela sagrou-se campeã do Carnaval de 1959. Além de compor e “puxar” sambas enredo na avenida e de tocar surdo, tamborim e reco-reco, Casquinha se notabilizou como um dos maiores versadores de improviso e compositores de sambas de terreiro na Portela.
“Casquinha fazia muito sucesso com as mulheres. Alto, bonito e forte, começou na música junto com seus companheiros da Turma do muro (Candeia, Bubu, Picolino, Waldir 59, entre outros) e faz parte da segunda geração de bambas da Velha Guarda da Portela. Aprendeu convivendo com os mestres a versar como poucos e logo se revelou um partideiro de mão cheia”, comenta Marisa Monte. “O partido alto é um estilo de samba que deu muitos frutos nos terreiros da Portela e que se caracteriza pela habilidade de improvisar numa roda de sambistas. É uma tradição brasileira, uma arte pura, sem filtro, vinda direto da alma”, completa a cantora e compositora.
Brasil, Pantheon de Glórias chegou a ser gravado em 1974 no LP História das Escolas de Samba – Portela, em série que também homenageou compositores do Império Serrano, da Mangueira e do Salgueiro, com produção de João Carlos Botezelli, o Pelão. No mesmo ano, Casquinha gravou duas músicas de sua autoria, O Sonho do Escurinho e Outro Recado (com Candeia), num álbum hoje considerado raro, Quem Samba Fica? Fica. Produzido por Adelzon Alves, o disco, popularmente chamado de “pau de sebo”, apresentava as primeiras gravações de nomes como Wilson Moreira e Dona Ivone Lara.
“O Casquinha tem essa capacidade de compor e de improvisar. Me lembro que em O Recado eu apresentei a primeira parte, e quando cantei pela segunda vez, o Casquinha nem perguntou como era, já emendou a segunda parte e todo mundo começou a cantar”, diz Paulinho da Viola. “A importância dele para a Portela é enorme, ele fez grandes sambas”, completa. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.