O museu do Santuário Nacional de Aparecida é ainda pouco conhecido, a despeito de receber por ano o mesmo número de visitantes do Masp (400 mil pessoas). Nesta sexta, 8, ele ganha uma rara coleção de arte sacra, um conjunto de 54 peças do século 17 pertencente ao colecionador e engenheiro paulista Ladi Biezus, também dono de uma coleção com algumas das melhores telas do maior pintor moderno do Brasil, Alfredo Volpi. Biezus cedeu ao museu, em regime de comodato, todas essas obras de mestres santeiros paulistas, ato generoso igualmente raro no País.
Elas estavam expostas até recentemente no Museu de Arte Sacra de São Paulo, por onde passam 50 mil pessoas por ano, mostra acompanhada por um livro organizado por Antonio Carlos Suster Abdalla, Mestres Santeiros Paulistas do Século 17 na Coleção Santa Gertrudes. “O museu paulistano já tem 12 mil peças no acervo e achei por bem ceder as obras ao santuário de Aparecida”, justifica Biezus, ex- diretor de museus em São Paulo, inclusive o de Arte Sacra.
O que atraiu o olhar do colecionador para os santos barrocos paulistas foi, de certo modo, a austeridade que via nas pinturas do moderno Volpi, autor de diversas telas em que essas figuras divinizadas são reduzidas a traços sintéticos. “Não existe, contudo, uma relação direta entre as coleções, pois o que me atraiu nas imagens seiscentistas não foi uma paixão intelectual, mas um fascínio pela inocência que elas sugerem.”
No barroco paulista, observa Biezus, ao contrário do barroco mineiro ou baiano, a ausência do ouro nas imagens define esse despojamento das peças de santeiros como Frei Agostinho de Jesus (c.1600-1661), que usou barro para esculpir obras como uma Pietà, de 1654, pertencente à coleção Santa Gertrudes, assim chamada porque a sua foi a primeira imagem a entrar para o acervo de Biezus.
Carioca, frei Agostinho passou por Santana do Parnaíba, onde teria esculpido uma imagem de Nossa Senhora da Conceição em terracota, encontrada meio século após sua morte, em 1717, nas águas do rio Paraíba do Sul, região de Guaratinguetá, provavelmente a mesma que viria a ser cultuada pelos fiéis como Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil. Pode não ser a pura verdade histórica, mas é a versão mais popular.
A coleção de Biezus tem imagens de Nossa Senhora da Conceição em terracota atribuídas ao Mestre de Pirapora do Bom Jesus e ao Mestre do Bolo de Noiva, passando pelo Mestre de Angra e de Sorocaba. Foi, aliás, uma pequena imagem da Nossa Senhora da Conceição, vista todos os dias na vitrine do antiquário Stanislaw Herstal, a caminho do trabalho, que levou Biezus a iniciar sua coleção – embora ele considere a imagem de Santa Gertrudes, comprada em 1972, o marco zero do acervo.
A imagem da santa beneditina, sempre representada com o coração aberto de alto a baixo, pertenceu à coleção de Anita Marques da Costa e seria obra do Mestre de Sorocaba. Tem apenas 38 centímetros de altura, mas impressiona pela feliz expressão no rosto que simboliza a humanidade do Cristo, representado por um menino que sai de seu coração.
A peça mais importante da coleção, segundo Biezus, é um busto relicário em terracota de Santa Engrácia, virgem e mártir portuguesa decapitada pelo noivo mouro, esculpido pelo Mestre de Angra. É curioso que, entre as 54 peças da coleção, 49 sejam de figuras femininas. Biezus recorre a Jung para explicar essa hegemonia. “É apenas uma hipótese, mas pense no esforço dos portugueses para cruzar o oceano e concluímos que foi como colonizar a lua”, argumenta. “Então, o recurso de se aproximar da figura materna para obter proteção por meio dessas imagens resultou numa tentativa de conservação que favorece o espírito de tolerância”, conclui, contrapondo esse espírito ao fundamentalismo patriarcal que hoje ameaça o mundo.
A recuperação da imagem de Aparecida no rio Paraíba é comparada por Biezus a um mergulho no inconsciente do povo brasileiro. “Ficava incomodado com o que fazer com a coleção e aí me deu o estalo de ceder o acervo a Aparecida”, revela Biezus, católico que tem feito da exposição de sua coleção um ato de fé. Recentemente, expôs sua coleção de arte popular no Museu Afro Brasil, que deve receber em 2017 seu acervo de tapetes caucasianos, peças da belle époque e as telas do pintor José Antonio da Silva, morto há 20 anos. A curadoria é do crítico Olívio Tavares de Araújo.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.