Estadão

Após montanha, Abel prova ser bem-sucedido na liga mais difícil do mundo

No começo de 2021, Abel Ferreira criou a metáfora da montanha, comparando cada um dos 13 jogos da edição passada da Copa Libertadores com uma espécie de cordilheira para que os jogadores entendessem a importância daquela conquista. A estratégia se mostrou bem-sucedida, já que o Palmeiras chegou ao cume, ou melhor, à glória eterna, com o terceiro título continental.

Em 2022, o plano passou a ser outro. A Libertadores continuou a ser obsessão, mas depois de dois títulos consecutivos, a prioridade era conquistar o Brasileirão, título que o jovem técnico de 43 anos e sua comissão ainda não tinham.

O método para deixar os atletas concentrados mudou, uma vez que o Brasileirão, disputado em pontos corridos, não em fases, sem mata-mata, exige regularidade e consistência nas 38 rodadas. Em vez da metáfora da montanha, o português e seus auxiliares tiveram um papo franco com o elenco que funcionou como um ponto de inflexão na trajetória do Palmeiras em 2022.

Eles mencionaram a campanha do Atlético-MG, vencedor da edição de 2021, e ouviram o que tinham a dizer atletas do grupo que já haviam ganhado o título nacional, principalmente Dudu, campeão em 2016 e 2018, além de outros jogadores experientes, casos de Weverton e Marcos Rocha.

"O Abel teve uma conversa com eles no começo da temporada, olhamos para os mais experientes e perguntamos o que era preciso para melhorarmos", revelou o auxiliar João Martins. Eles também abordaram o nível de dificuldade e a imprevisibilidade de um dos campeonatos mais difíceis do mundo ", nas palavras do treinador português.

"Nessa reunião tiramos coisas positivas e focamos muito nisso, não só nisso porque muitas vezes esse campeonato é exigente e imprevisível."

Depois de ganhar duas Libertadores, Copa do Brasil, Paulistão e a Recopa Sul-Americana, Abel entendeu o que precisava para levantar o troféu do Brasileirão e passou a fórmula ao elenco: concentração máxima, constância, solidez e regularidade. O time correspondeu e provou ser eficiente também no torneio de pontos corridos.

Depois da eliminação na semifinal da Libertadores, Abel e o elenco passaram a chamar de 13 finais os jogos que restavam. Ele pediu aos atletas para "fazer igual, mas melhor" a cada rodada e eles entenderam, tanto que foram protagonistas de uma campanha irretocável, que inclui melhor ataque, defesa menos vazada, invencibilidade como visitante, liderança desde a décima rodada, série invicta de 19 jogos – que ainda pode aumentar – e apenas duas derrotas.

"O que fizemos aqui, muito honestamente e direto, foi plantar muito trabalho, amor e carinho. Acredito que com isso tudo é possível na vida, seja em que profissão for. Acho que nada na vida derrota isso", filosofou o português, dono de seis taças em dois anos de Palmeiras e detentor de uma série de marcas expressivas, atualizadas com frequência.

UNANIMIDADE
Profundamente inquieto, rigoroso e diligente, o português se tornou unanimidade entre a torcida palmeirense, conhecida por ser "corneta". Para muitos, superou Vanderlei Luxemburgo e o amigo Luiz Felipe Scolari para virar o maior técnico da história do agora hendecacampeão nacional.

Os títulos foram fundamentais para a construção dessa idolatria, mas a personalidade do profissional, a fidelidade dedicada ao clube ao recusar propostas do exterior e renovar até o fim de 2024, e a maneira com que defende seus atletas contribuíram para esse processo.

"Tenho uma obrigação muito grande dentro de mim, eu sinto uma pressão muito grande porque tenho que fazer toda essa gente feliz. Sou muito exigente comigo, sofro muito sozinho e já lhes disse isso. Há um preço que se paga, e não sei quanto tempo mais vou estar disposto a pagá-lo", disse o comandante, que, embora se cobre muito, passou a estar mais tranquilo neste ano com a vinda da mulher e das filhas para o Brasil.

Mais do que ídolo dos palmeirenses, ele se transformou numa figura conhecida no País. Até quem não acompanha futebol sabe quem é Abel Ferreira e percebe que o personagem transcende o futebol. Maior prova disso foi o convite que recebeu para discursar a uma multidão na Bienal do Livro de São Paulo em julho. Na ocasião, teve tratamento de astro, com gritos de fãs eufóricos, entre jovens, mulheres e idosas, e passou horas autografando exemplares de "Cabeça Fria, Coração Quente", livro que ele e seus auxiliares lançaram no início do ano.

Outro exemplo disso foi a sabatina no Roda Viva, tradicional programa de entrevistas da TV Cultura em que ficam ao centro do debate grandes nomes de diferentes segmentos da sociedade. Naquela noite, também viveu horas de popstar. Depois de responder a 37 perguntas dos jornalistas, deu autógrafos em livros e camisas, atendeu a pedidos de fotos e recebeu abraços e elogios.

Também tornou-se cidadão paulistano com o título concedido pela Câmara Municipal de São Paulo e empilhou prêmios aqui e em Portugal como reconhecimento de seu trabalho à frente do Palmeiras. Foi condecorado, por exemplo, com o troféu Quinas de Ouro, mais alta distinção dada pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF), e eleito o melhor treinador português que trabalha fora do seu país de origem na 56ª edição do prêmio CNDI, promovido pela associação de jornalistas esportivos de Portugal.

MARCAS
O primeiro técnico da história do Palmeiras a colecionar pelo menos um título Estadual, um nacional e um internacional se habituou a derrubar tabus e colecionar façanhas. Recentemente, ele e sua comissão técnica alcançaram a marca de 100 vitórias no comando do Palmeiras. Hoje, registram 102.

Entre os estrangeiros, virou o segundo com mais triunfos, atrás apenas do uruguaio Ventura Cambon, com 305. No Allianz Parque, ninguém dirigiu o time mais vezes do que o português, nem obteve mais vitórias. São 46 triunfos em 72 partidas. Também estabeleceu o recorde de vitórias em sequência no local: dez no total.

Ampliando o recorte, nenhum treinador conquistou mais vitórias no futebol brasileiro desde outubro de 2020, data da chegada do treinador ao País, que era carente de profissionais como o português da pequena cidade de Penafiel. Resta saber quanto tempo os torcedores palmeirenses, fãs e admiradores de Abel poderão desfrutar do trabalho do comandante. Embora goste do que faz, ele disse reiteradas vezes que não pretende ser técnico por muito tempo.

"Não sei se vou chegar aos cinquenta", não garantiu o técnico mais falado do País e também o mais valorizado financeiramente, que completará 44 anos em dezembro.

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