Desidratação, exaustão, cãibras e, em casos graves, um quadro irreversível de hipertermia que leva à morte. Este seria o resultado, sobre o corpo humano, do cenário climático previsto com base em modelagem computacional para a Região Norte do Brasil em 2100. Tecnicamente, e considerando a demografia atual – ou seja, sem prever deslocamentos, rearranjos ou mesmo variação de tamanho populacional -, 12 milhões de brasileiros estarão expostos a níveis fisiologicamente intoleráveis de calor.
Isto é o que conclui um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros e publicado nesta sexta-feira pelo periódico internacional Communications Earth & Environment, revista científica segmentada da britânica Nature. "As florestas fornecem serviços ecossistêmicos benéficos para a saúde humana, incluindo o resfriamento local", comenta ao <i>Estadão</i> uma das autoras da pesquisa, a enfermeira Beatriz Fátima Alves de Oliveira, pesquisadora em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz em Teresina, no Piauí.
"Em geral, seres humanos possuem uma faixa de temperatura interna ideal para a manutenção da homeostase sistêmica, mas a exposição ambiental às condições extremas de temperatura pode exceder a capacidade do corpo humano em manter a termorregulação, provocando efeitos na saúde, como desidratação, exaustão, cãibras e, em casos graves, morte por hipertermia", explica ela. Alterações de humor, distúrbios psicológicos e redução de habilidades físicas e mentais também são consequências de uma exposição constante a níveis elevados de calor.
Nessas condições extremas, ressalta a pesquisadora, os grupos mais sensíveis são os idosos, as crianças e os portadores de doenças prévias. De acordo com o estudo, se nada for feito para mitigar os efeitos do aquecimento global e para conter a devastação da Floresta Amazônica, a Região Norte do País viverá um clima quente sem precedentes. Enquanto a elevação da temperatura média na maior parte da América do Sul ficará entre 2 e 5,5 graus Celsius, na bacia Amazônica as projeções indicam um aumento de 11,5 graus, considerando o pior cenário.
Isso tudo por causa da destruição do bioma, que agrava ainda mais as previsões decorrentes das mudanças climáticas. "A savanização da Amazônia acarreta a diminuição do transporte de vapor d água do Oceano Atlântico para o interior do continente, afetando assim tanto a pluviosidade, com redução das chuvas, quanto o controle da temperatura do ar, as ondas de calor, no interior do País", contextualiza ao <i>Estadão</i> o meteorologista Paulo Nobre, pesquisador no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e outro dos autores do trabalho.
<b>Restante do Brasil</b>
As modelagens também serviram para prever o impacto do aquecimento no restante do País. No total, os pesquisadores concluíram que 16% dos 5.565 municípios brasileiros sofreram, em alguma medida, estresse térmico relacionado não só ao aquecimento global, mas também especificamente à savanização da Amazônia. Isso significa 30 milhões de pessoas.
O cenário mais grave, contudo, é o da Região Norte, onde 12 milhões de pessoas poderão estar expostas a risco extremo de calor na virada do próximo século. Se nada for feito para conter esse cenário, a previsão é de que haja uma migração em massa, já que essas pessoas não suportariam viver em clima tão hostil.
Embora difícil, a receita, lembram os cientistas, já existe. "Ações coordenadas de proteção ao meio ambiente a níveis local, regional e global representam uma das formas mais eficazes de seguro climático contra as consequências adversas das mudanças ambientais locais e globais", afirma Nobre. "Não basta zerar o desmatamento amazônico, do Cerrado, da Caatinga, da Mata Atlântica. É preciso reflorestá-las."
A deterioração ambiental chegou a tal ponto que, para evitar o colapso, não adianta mais simplesmente parar de destruir o meio ambiente. Embora o estudo seja circunscrito à realidade brasileira, os pesquisadores acreditam que outras partes do mundo devem enfrentar problemas semelhantes. "Particularmente em regiões que sofrem acelerado processo de desflorestamento", frisa Nobre.
<b>Desafios para a saúde pública</b>
Ao trazer o debate da crise ambiental para o prisma da saúde pública, os pesquisadores não só demonstram que na destruição da natureza o ser humano continua dando tiros no próprio pé. Também lançam luz sobre a necessidade, premente, de que o problema seja pensado e planejado dentro das políticas de atendimento às populações que serão mais fortemente afetadas.
A enfermeira Beatriz Fátima Alves de Oliveira, pesquisadora em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz em Teresina, no Piauí, lembra que é preciso incluir "novas perspectivas nos serviços de saúde que, na maioria das vezes, não está apto para diagnosticar agravos decorrentes do aumento da temperatura." Isso já dificulta registros e notificações de potenciais problemas associados às condições extremas. "Um exemplo é a ausência de dados relacionados a problemas psicossociais pós-traumáticos", diz.
Ela cobra o fortalecimento da atenção primária e uma melhor capacitação dos profissionais de saúde "para a melhoria na notificação de doenças e agravos fortemente associados às mudanças climáticas". E diz que é necessário o "desenvolvimento de ferramentas e de sistemas de alerta para identificação de áreas de risco, contribuindo para adoção de respostas rápidas por parte do setor de saúde diante de riscos extremos."
E, claro, não se pode descuidar do anteparo social. Afinal, quanto mais vulnerável a população, mais suscetível ela está a sofrer os efeitos do aumento da temperatura. Por isso, Oliveira defende o "fortalecimento da atenção básica" e a "implementação de ações e programas intersetoriais para a redução de vulnerabilidades sociodemográficas, econômicas e de acesso aos serviços de saúde". "Tudo o que possa reduzir os impactos do aumento extremo da temperatura", comenta.
Embora seja inédito por fazer uma previsão de aumento de temperatura considerando os impactos da saúde pública, este não é o primeiro estudo recente a relacionar a crise climática diretamente à sobrevivência humana.
Em maio, a revista Nature Climate Change, também da Nature, publicou um estudo em que foram tabulados registros de óbitos ocorridos entre 1991 e 2018 em 732 cidades de 43 países diferentes. E a conclusão é de que o aquecimento global já está matando pessoas.
Isto porque, de todas as mortes em consequência de calor ocorridas no período, 37% não podem ser explicadas por ocorrências naturais ou sazonalidades, e sim desencadeadas por ação antropogênica, ou seja, feitas pelo próprio ser humano.
Um dos responsáveis pela análise dos dados brasileiros foi o médico patologista Paulo Saldiva, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Ele e sua equipe concluíram que 1% das mortes consideradas "de causa natural" atualmente no País já podem ser atribuídas, na verdade, a efeitos adversos decorrentes do aumento da temperatura média.
Em setembro, o periódico científico Lancet publicou estudo sobre consequências da degradação ambiental na saúde pública. O grupo de pesquisadores se debruçou sobre dados de internação hospitalar de 2000 a 2015 de 1.814 municípios brasileiros, uma estrutura que cobre 80% da população nacional. E a conclusão foi a de que a poluição decorrente dos incêndios florestais já se tornou a causa de internação de 47.880 pacientes por ano. As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>