O Senado da Argentina aprovou na madrugada desta quarta-feira, 30, um projeto de lei que legaliza o aborto no país. Reivindicação de grupos feministas, a proposta autoriza a interrupção voluntária da gravidez até a 14.ª semana de gestação. Após 12 horas de sessão, o texto proposto pelo governo do presidente Alberto Fernández teve 38 votos a favor, 29 contra e uma abstenção.
Milhares de apoiadores da proposta, vestindo verde, concentraram-se ao redor do Congresso para comemorar, mas vários grupos criticaram o resultado. Até agora, o aborto só era permitido se a mulher sofresse estupro ou estivesse em perigo de vida. Com isso, a Argentina se torna o primeiro grande país da América Latina a permitir o procedimento, que até então era autorizado apenas em Cuba, no Uruguai, na Guiana e em partes do México.
A legalização da prática, apoiada pelo presidente argentino, havia sido aprovada na Câmara dos Deputados no dia 11. Após a proposta passar no Senado, Cristina Kirchner, vice-presidente do país e também presidente da Casa, disse que o texto "se converte em lei e segue para o Poder Executivo". A ex-presidente argentina costumava ser contra a legalização, mas mudou de posição recentemente.
Assim que a lei entrar em vigor, toda gestante poderá ter acesso ao aborto no sistema de saúde, de forma gratuita, até a 14.ª semana de gestação. Os dois motivos para interrupção da gravidez já permitidos por lei continuam valendo. Estrangeiras também poderão usar o sistema – hoje em dia, muitos paraguaios e bolivianos fazem uso do sistema de saúde público argentino.
As menores de 13 anos podem fazer o procedimento com a assistência de pelo menos um dos pais ou representante legal, enquanto as que têm de 13 a 16 anos só precisarão de autorização se o aborto comprometer a saúde. As maiores de 16 decidirão por si próprias.
A lei também preconiza a responsabilidade do Estado de implementar a Lei de Educação Sexual Integral e atualiza as penas de prisão com as quais será punido quem trabalhar ou consentir em fazer um procedimento fora do prazo e causas permitidas. Médicos podem alegar objeção de consciência para não fazer o aborto, mas devem encaminhar rapidamente a paciente para uma equipe disposta a concretizá-lo.
É a segunda vez que um projeto de legalização da interrupção voluntária da gravidez é debatido no Congresso argentino. Em 2018, sob o governo de Mauricio Macri, um texto semelhante elaborado por uma plataforma civil foi aprovado pelos deputados, mas não pelo Senado.
Um ano depois, o atual presidente prometeu em campanha a promoção de uma nova lei, com o objetivo principal de reduzir os abortos clandestinos. O argumento central é que eles colocam em risco a vida das mulheres, principalmente daquelas que não podem pagar as clínicas particulares onde, apesar de ser ilegal, o aborto é praticado com maior segurança.
Esperava-se um resultado apertado ou mesmo a possibilidade de um empate na votação de ontem, mas houve diálogo até o último minuto para ampliar a margem de aprovação, com promessas de pequenas mudanças no projeto. Alguns indecisos ou posicionados contra o texto decidiram votar a favor.
Quando o resultado foi anunciado, a multidão reunida às portas do Parlamento na chamada "maré verde" – como são conhecidos os grupos que apoiam a legalização – comemorou, em contraste com a decepção das organizações autodenominadas "pró-vida".
O presidente celebrou a aprovação da proposta no Twitter. "O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Com isso me comprometi durante a campanha eleitoral. Hoje somos uma sociedade melhor que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública", sustentou.
<b>Reações</b>
A questão do aborto causou dissenso nos principais grupos políticos, independentemente de serem legisladores da ala governante (Frente de Todos), do principal grupo de oposição (Juntos pela Mudança) ou de formações menores. O tema rompeu a polarização política clássica, apelidada pelos argentinos de "brecha", já que alguns peronistas – dentro dos quais os kirchneristas representam uma linha mais radical – votaram contra o projeto. E houve opositores que apoiaram a mudança.
"Assumamos que, se essa lei não sair hoje, seremos responsáveis pelas mortes de mulheres por abortos clandestinos, porque o Estado é o responsável", disse a senadora kirchnerista Anabel Fernández Sagasti na sessão, convencida de que a mulher deve viver "livre, sem medo e com poder de decisão".
Luis Naidenoff, do grupo opositor Juntos pela Mudança, foi na mesma linha, acrescentando que "não é uma questão menor" garantir a todas as argentinas o acesso à "saúde pública". Sua parceira de coalizão Silvia Elías de Pérez, porém, posicionou-se contra. "Não há direito mais protegido pela lei, tanto na legislação nacional como internacional, do que o direito à vida da criança."
"Uma vez que é concebido, é um ser humano", disse José Mayans, uma das vozes peronistas contrárias, completando: "A decadência de um Estado é quando nem o presidente, nem os legisladores, nem o Judiciário respeitam a Constituição". Para Mayans, a lei é "inconstitucional e inaplicável" e trará "muitas questões judiciais".
A ministra da Mulher, Gênero e Diversidade da Argentina, Elizabeth Gómez Alcorta, considerou a aprovação da lei "um grande triunfo para o movimento feminista" e "um fato histórico". "Também sabemos que toda a nossa querida região nos observa e não tenho dúvidas de que toda a América Latina avança ao lado das argentinas".
A medida foi criticada por grupos religiosos e organizações "pró-vida". "É muito triste que com um papa argentino (Francisco) e quando no governo há um partido cujos fundadores e presidentes são contra o aborto, tenham aprovado uma lei inconstitucional, anti-humana e anticristã, permitindo-se ser colonizados ideologicamente pelo pensamento dominante", afirmou o arcebispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo, em entrevista ao jornal La Nación. O arcebispo é representante da Pontifícia Academia de Ciências e Ciências Sociais do Vaticano.
A Unidade Pró-Vida, que reúne cerca de 150 organizações da sociedade civil contrárias ao aborto, grupo que adotou os lenços azul-claros como contraponto ao verde das defensoras do projeto, emitiu um comunicado. "Continuamos lutando contra o aborto, continuamos a defender os inocentes, continuamos a capacitar as mulheres com educação, com ferramentas, com amor, em uma sociedade fragmentada. Nenhuma lei inconstitucional nos desarmará. Nenhuma lei inconstitucional mudará nossa posição", postou o grupo no Twitter.
Ao lado desses grupos e da Igreja Católica, a Aliança Cristã de Igrejas Evangélicas (Aciera) também promoveu marchas de rua, cultos ao ar livre e reagiu em nota. "Hoje, a Argentina regrediu séculos de civilização e de respeito ao supremo direito à vida."
<b>Bolsonaro e Araújo criticam nova lei de país vizinho</b>
O presidente Jair Bolsonaro criticou ontem a legalização do aborto na Argentina. "Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas, agora sujeitas a serem ceifadas no ventre de suas mães com anuência do Estado", escreveu no Twitter o presidente, que tem forte apoio das igrejas neopentecostais, contrárias à legalização do aborto. "Enquanto depender de mim ou do meu governo, o aborto nunca será aprovado em nosso solo."
Horas antes, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, também havia criticado a aprovação. "O Brasil permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de saúde reprodutiva ou direitos sociais ou como quer que seja", escreveu.
No Brasil, o artigo 128 do Código Penal autoriza o aborto "se não há outro meio de salvar a vida da gestante" e no caso de gestação resultante de estupro, nesse caso mediante autorização da vítima ou de um representante legal para a prática. Além disso, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) prevê o procedimento para casos de fetos anencéfalos atestados em laudo médico. (COM AGÊNCIAS INTERNACIONAIS)
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>