Se o desafio de todo colecionador é completar o álbum, na Argentina, nesta reta final para a Copa do Mundo do Catar, surgiu uma nova missão: conseguir figurinhas em meio à profunda escassez de pacotinhos, chegando ao ponto de o governo tratar o problema como uma questão de Estado.
A escassez, motorizada pela incomum demanda, produz distorções, gerando um mercado paralelo de figurinhas em coincidente sintonia com o mercado não oficial do dólar e levando os argentinos a contarem com os preços mais elevados da América Latina, apesar de terem, neste momento, um dos salários de menor poder aquisitivo da região, quando medidos na moeda dos Estados Unidos.
O estudante Bautista Dobarro, de 14 anos, morador de Olivos, município de classe média e alta da periferia de Buenos Aires, percorre os "quiosques" ao redor da sua casa e do colégio numa frustrante peregrinação diária. "É muito difícil conseguir figurinhas. Quando encontro um quiosque que tenha, vendem mais caro e limitam a quantidade de pacotinhos por pessoa, em até cinco. O grande desafio é conseguir figurinhas", descreve ao <b>Estadão</b> enquanto percorre mais quiosques.
Na Argentina, a principal venda de figurinhas é por meio dos chamados "quiosques" (kioscos). São lojinhas de conveniência espalhadas por quase todos os quarteirões das cidades do país. "Não, não tenho. Há muito tempo que não recebo figurinhas da Panini", diz um dos quiosqueiros por onde Bautista passa junto com a reportagem. "Cerca de 50 crianças e adultos por hora me perguntam se tenho figurinhas", responde outro.
De repente, como um oásis no deserto, a resposta é positiva. "Sim, acabamos de receber. Viva!", festeja a dona de um quiosque em cuja porta diz claramente: "Não há figurinhas nem álbum do Mundial do Catar". "Ainda não tivemos tempo de tirar o cartaz. Assim que tirarmos, as figurinhas acabam em poucos minutos", esclarece a dona, que se limita a vender três pacotinhos por pessoa a 200 pesos, 50 a mais do que o valor oficial.
Para Bautista, está em jogo o fanatismo argentino pelo futebol. "Isso está acontecendo porque é a última Copa do Messi e porque a seleção argentina vem de ganhar a Copa América no Brasil. Isso nos faz sonhar com a Copa do Catar", acredita Bautista, enquanto exibe as figurinhas mais desejadas do seu ídolo. "Crianças e adultos, todos querem conseguir a figurinha do Messi. Por sorte, eu consegui a figurinha do Messi duas vezes, uma no colégio. Outra comprando envelopes", recorda com alegria.
Em uma das vezes, esqueceu de avisar sua mãe que saía à caça de figurinhas. "Depois, tive problemas em casa, mas eu estava tão emocionado de conseguir as figurinhas que esqueci", justifica. A última Copa do Mundo vencida pela Argentina foi em 1986, quando Maradona ainda era o principal jogador do país. A geração de Messi nunca teve essa honra. No Brasil, em 2014, o time liderado pelo então jogador do Barcelona ficou em segundo lugar: perdeu para a Alemanha por 1 a 0 no Maracanã na grande final.
Enquanto Bautista exibe as figurinhas como um troféu, crianças vêm correndo do outro lado da pracinha. "Ele tem a do Messi de ouro!", grita, insistentemente, Ramiro, de sete anos, explicando que essa "é a mais difícil de todas". E também a mais desejada.
MERCADO PARALELO
Oficialmente, cada pacotinho de figurinhas custa 150 pesos. Na prática, devido à escassez, os preços variam até 300 pesos. Pela Internet, os valores podem chegar a 600 pesos cada envelope fechado, quadruplicando o seu valor original.
Esse mercado paralelo tem uma coincidente relação com o mercado de câmbio. Enquanto US$ 1 na Argentina vale 150 pesos no câmbio oficial, no paralelo, chega a 300 pesos. E assim como o câmbio oficial é fictício porque ninguém tem acesso, resta o câmbio paralelo. Uma das maiores ilustrações desse mercado paralelo acontece pelo centro de Buenos Aires. Os mesmos doleiros que gritam "câmbio, câmbio" aos turistas, agora anunciam também "figuritas, figuritas del Mundial" aos argentinos.
"Pela Internet, a diferença de preço é um roubo e há muitos golpes. Em outros canais de venda, é um pouco mais fácil, mas mais caro do que o oficial. Acontece com as figurinhas o mesmo que acontece no mercado do dólar", indica ao <b>Estadão</b> o contador público Juan Pablo Mogni, de 36. "Acho que, no Brasil, não vão entender isso", brinca. "Para mim, é uma volta à infância. Acho genial vir ao parque trocar figurinhas tanto com crianças quanto com médicos, todos unidos pela mesma paixão", destaca.
MERCADO DA TROCA
Juan Pablo vai todos os fins de semana ao Parque Centenário e ao Parque Rivadavia de Buenos Aires para trocar figurinhas. Um formigueiro de colecionadores fica até à noite, na luta por conseguir o que falta nos quiosques.
No Parque Centenário, o estudante Tomás Orosa, de 15 anos, tenta a sorte que muitas vezes não encontra nos quiosques. "Todos os dias, quando eu saio do colégio, passo por cinco quiosques e nenhum tem figurinhas. Quando finalmente consigo, vendem mais caro devido à demanda. Para mim, esta loucura acontece porque é a última Copa do Messi e porque a seleção está jogando bem", acredita Tomás.
Ao seu lado, Julián Puente, de 13 anos, concorda. "Era lógico que aconteceria isso. Por mais que seja mais caro, íamos comprar do mesmo jeito porque a Argentina está jogando bem, ganhou a Copa América e finalíssima (contra a Itália), observa, criticando os vendedores. "Os que vendem figurinhas aproveitam e vendem mais caro. Isso incomoda um pouco", reclama. "Eu sei que vou encontrar a figurinha do Messi, mas não vou pagar os dois mil pesos (US$ 13) que pedem pela Internet. A graça é encontrar a figurinha e festejar", garante.
QUESTÃO DE ESTADO
Há duas semanas, a Secretaria de Comércio do governo argentino convocou as partes para tentar uma solução, pondo-se como mediadora e tornando a escassez de figurinhas uma questão de Estado. "O secretário de Comércio, Matías Tombolini, pôs à disposição as equipes legais e técnicas da Secretaria para colaborar na procura de possíveis soluções entre as partes em torno da comercialização de figurinhas do Mundial do Catar", informou o governo.
De um lado estão os representantes na Argentina da empresa italiana Panini, responsável pelo álbum no mundo. Do outro, os representantes da União dos Quiosqueiros da República Argentina (UKRA, na sigla em espanhol). "A empresa Panini se comprometeu a fabricar mais, aumentando entre 15% e 20% a sua produção na Argentina. Por outro lado, prometeu começar a controlar os distribuidores. Cerca de 95% do que a empresa produz vai aos quiosques enquanto os restantes 5% são vendidos através de supermercados e outros canais. O problema é que a empresa vende aos distribuidores, mas os distribuidores resolveram fazer um negócio paralelo: vendem eles mesmos diretamente ao público, através da Internet, aproveitando a febre pelas figurinhas", explica ao <b>Estadão</b> Ernesto Acuña, vice-presidente da UKRA, presente na reunião.
O problema começou logo no dia 21 de agosto, Dia das Crianças na Argentina. A empresa lançou o álbum em sintonia com a data e esse foi um dos principais presentes para as crianças. Desde então, a escassez se manteve.
No começo de setembro, Ernesto Acuña comandou um protesto com cerca de 200 quiosqueiros na porta da Panini, acusando a empresa de vender online através do seu site e de não impedir que os distribuidores vendessem as figurinhas diretamente pela Internet. Pela lógica dos manifestantes, se os quiosques vendem as figurinhas de outros álbuns da Panini durante quatro anos, por que devem perder o mercado justamente no período de maior rentabilidade que a Copa do Mundo representa?
As figurinhas saem da Panini em caminhões diretamente aos distribuidores. Para operação, a rua do bairro de Martínez, no município de San Isidro, na região metropolitana de Buenos Aires, é fechada com reforço policial. Os caminhões partem, como carro-forte, escoltados pela polícia.
"A menor parte da carga que os distribuidores não vendem pela Internet é entregue aos quiosques, mas mais caro. Deveriam vender a 115 ou 120 pesos para vendermos a 150, mas entregam a 200 ou 250, elevando o preço final a 250 ou até 300 pesos", critica Ernesto.
FANATISMO
No quiosque de Ernesto, no bairro de Villa Urquiza, em Buenos Aires, a vizinhança já sabe: as figurinhas costumam chegar duas vezes por semana. Nos dias do milagre, Ernesto vende as figurinhas, religiosamente, às 18 horas, quase como uma missa. Os fiéis fazem uma fila de 150 a 200 metros que vira a esquina.
De acordo com a quantidade de pacotinhos recebidos, Ernesto distribui senhas. Desta vez foram 200 pacotes para 100 pessoas, dois para cada uma. Os últimos da fila ficaram sem número.
"Com as figurinhas, acontece o mesmo que aconteceu com o álcool gel no começo da pandemia, quando todos saíam para comprar álcool como uma questão de vida e morte. Havia aquela sensação de que, sem álcool gel, talvez você morresse. Este assunto das figurinhas nos faz lembrar daquela época", compara Ernesto. "Dois pacotinhos por pessoa não é nada, mas ninguém se queixa. São dez figurinhas (cinco por pacote) que deixam as crianças contentes", ressalta Ernesto.
"Este é o melhor dia da minha vida", exclama o jovem Vito, de 8 anos, ao abrir os pacotinhos. Pula de alegria e, mesmo questionado se Papai Noel não é melhor, reafirma: "Não. Este é o melhor dia da minha vida."
AS MAIS CARAS DA AMÉRICA LATINA
Esse fanatismo leva os argentinos a pagarem o pacotinho mais caro da América Latina, quando, medidos em dólares, os salários na Argentina estão entre os de menor poder aquisitivo, devido à brutal desvalorização de 350% do peso argentino ao longo dos últimos dois anos.
Enquanto o valor da unidade ronda os 0,80 centavos de dólar nos países da região, na Argentina, tanto os 150 pesos oficiais ou os 300 do mercado paralelo equivalem a US$ 1. Quem paga os 600 pesos da Internet, convalida valores próximos de US$ 2.
"Separo 25% do que ganho na pizzaria para comprar figurinhas", confessa ao <b>Estadão</b> Dante Ledesma, de 18 anos, ajudante e entregador numa pizzaria. "Duas vezes por semana, pego um ônibus às oito da manhã para ir a um quiosque. Quando tem figurinhas, faço uma hora de fila. Consigo na metade das vezes que tento. É muito complicado. Os quiosqueiros fazem um monopólio e cobram o que bem entendem. Aproveitam a escassez", acusa Dante.
SEM OBSTÁCULOS
O sociólogo argentino Pablo Alabarces, um dos fundadores da sociologia do esporte na América Latina e referência na região, atribui o problema das figurinhas na Argentina ao "erro de cálculo dos fabricantes que não previram tamanha demanda" a partir da "maior expectativa desportiva".
"As expectativas desportivas agora são mais altas do que em 2018. A vitória na Copa América (depois de 28 anos de jejum), a classificação folgada para a Copa do Mundo, a boa equipe de jogadores em torno de Messi explicam essas expectativas, mas também o pessimismo com o país", indica Alabarces ao <b>Estadão</b>.
Mas quanto joga a paixão dos argentinos pelo futebol neste fenômeno? "A paixão também joga. Participar desse consumo faz o colecionador se sentir parte de um coletivo. Coleciono figurinhas, logo sou parte da torcida argentina. O ponto central não é a racionalidade econômica, mas a racionalidade puramente afetiva", avalia Alabarces. "Portanto, entram em jogo as expectativas desportivas e a ideia de formar parte desse coletivo", sintetiza o especialista.
O estudante Ian Luca Quilmanas, que tem 11 anos, parece se encaixar nessa lógica. "Eu tento comprar figurinhas todos os dias, mas quase nunca consigo. Colecionar figurinhas é uma obsessão. Esta Copa será sempre a minha preferida porque é o último Mundial do meu ídolo Messi. Também é o último do Di Maria. E a Argentina é favorita. Para mim, o futebol é o melhor esporte e o mais bonito. E o meu primeiro desafio agora é conseguir figurinhas", desabafa à reportagem.
O quiosqueiro Ernesto Acuña também arrisca a analisar a paixão dos argentinos pelo futebol e pelas figurinhas. "As figurinhas são uma paixão argentina. Mais uma das tantas paixões argentinas como pode ser o futebol ou um artista. E o argentino responde a essas paixões, consumindo. Não tem limites para gastar se for para sustentar as suas paixões. Limita-se em outras coisas, mas gasta nas paixões. As figurinhas não são baratas na Argentina. Proporcionalmente, são mais caras aqui do que nos países vizinhos, mas aqui se tornou uma paixão nacional", conclui Ernesto Acuña.