Na véspera das eleições primárias para presidente na Argentina, uma pesquisa mostrou a mudança no perfil ideológico da sociedade, que se mostra cada vez mais pró-iniciativa privada e menos pró-Estado, um dado que coloca o eleitor mais perto da oposição do que do governo atual. Já no campo moral, os argentinos estão igualmente divididos entre conservadores e progressistas. Apesar do crescimento do sentimento antipolítica e da crise econômica que vem impulsionando ultraconservadores, a defesa pela democracia é um ponto de convergência entre quase todos os espectros sociais.
As conclusões são da Pesquisa Nacional de Crenças Sociais conduzida pelo Instituto Pulsar, um observatório de opinião pública da Universidade de Buenos Aires. Para compreender os espectros ideológicos da sociedade, o grupo separou as crenças em dois eixos: o econômico e o moral, cruzando ambos.
No econômico, a divisão é entre privatistas e estadistas, ou seja, os que defendem menor ou maior presença do Estado nas decisões econômicas. No campo moral, há os conservadores contra progressistas, que defendem uma maior ou menor regulação nos temas individuais como direito ao aborto, adoção entre pessoas do mesmo sexo, armas, entre outros.
O resultado foi uma mudança da preferência dos argentinos no campo econômico, que desde os anos 2000 tinha uma maior inclinação pró-Estado e agora se converte em posições mais liberais, em que o Estado deveria ter pouca intervenção no setor econômico, na oferta de serviços básicos e com baixa ou quase nenhuma regulação.
"A Argentina sempre foi muito marcada a preferência para que o Estado fornecesse os serviços, e essa posição foi sustentada durante os anos 2000 e 2010", aponta Augusto Reina, diretor do Instituto Pulsar e professor na UBA. "Agora isso começa a mudar e ressurge a ideia de que o setor privado pode ser mais eficiente e satisfatório para prover certos serviços e gerir empresas. Essa é a primeira grande mudança que notamos."
Nesse tema, cerca de 56% da população diz ter maior confiança nas empresas privadas, contra 39% que apontaram as públicas. Cerca de 60% também defende que sejam as empresas privadas as maiores ofertadoras de empregos, e 46% quer que as companhias sejam privatizadas, ainda que tenha alguma regulação do Estado.
Em relação aos gastos do Estado, os cidadãos se mostraram muito a favor de um corte (80%), porém acreditam que Educação e Saúde deveriam ser poupadas. Uma pequena maioria se colocou a favor dos programas sociais (54%), porcentagem que cresce entre peronistas (85%). Também há grande apoio a: reformas trabalhistas e previdenciárias (57%), maior abertura econômica (73%), que mais ricos paguem mais impostos (66%) e que o meio ambiente precisa ser priorizado para o crescimento econômico (66%).
<b>Armas, aborto e linguagem neutra</b>
A segunda mudança é na questão da segurança e nesse tema existe quase um contraponto, afirma o pesquisador, em que surge uma exigência de maior atuação da ordem pública no tema e maior protagonismo das forças de segurança no combate ao crime e encarceramento de pessoas. Em outras palavras, os argentinos querem que o Estado lide com a questão da segurança, aplicando penas mais duras, mas são contra a população pegar em armas.
Nesse quesito, mais de 75% dos argentinos defendem que se deve aumentar as penas para controlar a insegurança, e mais de 70% acredita que os militares devem atuar para combater o narcotráfico. No entanto, cerca de 85% é contra o porte de armas para qualquer pessoa. "Não é uma defesa de maior segurança a qualquer custo, no sentindo da guerra de todos contra todos, com cada um de nós portando armas. Mas sim através das instituições, com limites estabelecidos", aponta Reina.
Já em temas sociais, a maioria dos argentinos se mostra a favor da eutanásia (72%), que duas pessoas do mesmo gênero possam adotar filhos (59%) e que pessoas possam praticar barriga de aluguel (58%). Porém, são menos a favor da lei de aborto (40%), legalização do trabalho sexual (36%), legalização do consumo de maconha (30%) e do uso da linguagem inclusiva (23%).
"Há certos valores sociais arraigados, e aqui há novidades, que se enraizaram e que não há como voltar atrás. Por exemplo, a adoção entre pessoas do mesmo sexo está implícito em nossa legislação sobre casamento igualitário, é assumido quando sancionamos essa lei e isso se manteve", explica o pesquisador.
"Caso contrário é a interrupção voluntária da gravidez que parece ver uma retração no seu nível de apoio após as suas sanções e provavelmente a sua legislação". Em dezembro de 2020, a Argentina aprovou uma lei que permite o aborto até a 14ª semana de gestação, em uma votação apertada e que durou mais de 12 horas.
<b>Como afeta as eleições</b>
Por coincidência, ressalta Augusto Reina, a pesquisa – que foi dividida em três partes – foi realizada e publicada a poucas semanas das eleições. Uma primeira publicação saiu em junho, uma segunda no mês de julho e a terceira e última em 4 de agosto. Por isso, os pesquisadores conseguiram analisar como cada perfil ideológico se distribui entre as três principais coalizões partidárias.
Augusto ressalta que o estudo preferiu separar os perfis ideológicos em quatro categorias que se intercalam para fugir da dicotomia direita versus esquerda. "Tentamos nos esquivar de algo que é muito reinante nos nossos tempos que é a bipolaridade do debate e tratar de buscar pontos em comum e de dissensos", explica.
Nesse sentido, a queda de apoiadores do Estado na vida econômica tende a impactar a coalizão peronista do União pela Pátria (UP) – antiga Frente de Todos – que tende a ter uma atuação mais estatista. Já a coalizão de oposição, Juntos Pela Mudança (JxC), conseguiu capturar esse público cada vez mais liberal em termos econômicos.
Se apenas 39% do público diz confiar mais nas empresas públicas, esse número salta para 50% entre os apoiadores do União pela Pátria. Por outra parte, se 46% apoia a privatização de empresas, esse dado passa a 53% entre os apoiadores do Juntos Pela Mudança.
Em questão moral, os apoiadores do Juntos Pela Mudança tendem a ser mais progressistas, defendendo que o Estado não interfira nas questões pessoais, enquanto os eleitores do governo se dividem igualmente nessas questões. Na oposição, 71% se mostra contra o aborto, contra 56% dos peronistas. Já 88% do JxC é contra o uso da linguagem neutra frente aos 51% do UP.
Quem consegue capturar com mais clareza o eleitorado conservador, especialmente o conservador pró-iniciativa privada, é a coalizão A Liberdade Avança (LLA), do candidato libertário Javier Milei. Este é o público que se mostra menos a favor do uso das Forças Armadas na segurança, favorecendo porte de armas; também são 75% a favor das empresas privadas.
<b>Democracia como consenso/b>
Outro público que Milei consegue capturar, mas é limitado, é o de pessoas que estão dispostas a abrir mão de certas liberdades democráticas em troca de um combate ao narcotráfico. Mas esse apoio, na Argentina, é reduzido, já que a democracia aparece como consenso, mesmo em meio ao descontentamento político e crescimento do sentimento antipolítica.
Esse resultado apareceu na primeira pesquisa de Crenças Sociais da Pulsar, publicado em junho, mas também surgem em pesquisas de opinião de consultorias argentinas. Pela pesquisa da Pulsar, mais de 85% dos argentinos preferem viver em um governo democrático, embora menos de 60% acreditam estar vivendo atualmente em democracia. Para 73%, a democracia é melhor em qualquer circunstância, contra 13% que dizem que um governo autoritário pode ser preferível em determinadas ocasiões.
"Está claro que a sociedade argentina tem uma valoração muito alta pelo regime democrático, uma das mais altas da região, segundo o Latinobarômetro, mas também há uma insatisfação bastante marcada", aponta Reina.
É essa insatisfação que Milei consegue capturar, mas também explica o teto de intenções de voto que ele atingiu recentemente. "Há uma rachadura muito profunda na sociedade argentina, mas fora dessa rachadura, argentinos e argentinas chegaram a certos consensos mínimos e um deles é o apoio ao sistema democrático", afirma Ana Paola Zuban, cientista política e diretora da consultoria de pesquisas eleitorais Zuban Córdoba.
"Nós medimos em algumas pesquisas nacionais esse apego ou distanciamento em relação à democracia e descobrimos que mais de 70%, quase 80%, dos cidadãos sustentam que o sistema democrático ainda é, com todos os defeitos e com todos os problemas que tem, a melhor forma de viver", afirma.
Mas um consenso democrático não significa consenso em torno dos políticos e o que está claro, segundo a pesquisadora, é que existe um divórcio entre os cidadãos e a classe política. "Divórcio altamente motivado e aprofundado porque nenhuma das expressões políticas, pelo menos não as expressões políticas tradicionais, conseguiram atender integralmente às demandas dos cidadãos", diz.
É por isso que a pesquisadora se diz mais cética que seus colegas quando veem uma queda de Milei nessas eleições – ocorrido em meio a escândalos de venda votos. Em meio a uma oferta eleitoral em que o governo é altamente impopular e a oposição está fragmentada em dois grandes candidatos, Milei surge capturando quem não acredita em nenhuma das opções tradicionais, o que ele próprio chama de "casta política".
"Acho que essas eleições vão ser um pouco sobre isso, sobre se a Argentina continua com uma trajetória progressista ou se escolhe entre duas posições de direita, sendo uma moderada e mais democrática ou de extrema direita, como é a posição de Milei", completa.