O samba já chegou ao mundo na desconfiança. Afinal, Pelo Telefone, na voz de Donga, alardeado como a primeira gravação com este rótulo, nunca foi, ortodoxamente falando, um samba de fato. Mas assim, na euforia das rodas que se formavam por aquele começo de século 20 e dos improvisos confiantes de Sinhô, João da Baiana e toda a população que passou a habitar terrenos como o de Tia Ciata, um batismo passou a ser necessário e a criança escolhida se chamava Pelo Telefone.
Cento e dois anos depois, o samba, apesar dos episódios de suas pelo menos quatro internações na UTI, segue sendo o único ritmo de abrangência territorial irrestrita em um país de quase 210 milhões de pessoas. Um feito absoluto, o único ritmo popular presente de alguma forma em 5.570 municípios, uma experiência sem paralelos em países continentais (o blues nos Estados Unidos está cada vez mais longe de ser uma realidade nacional onipresente).
Inspirados por uma história que começa antes dos anos 1920 e segue com seus heróis visíveis e invisíveis até 2019, os seis integrantes do Art Popular, um dos grupos que representaram o único momento da história em que o samba prosperou na condição de música pop de rádio, nos anos 1990, vai apresentar um espetáculo cheio de verdade e ficção. Leandro Lehart escreveu o roteiro, Alexandre Matias fez a direção musical e o Itaú Cultural abrigou. Os shows no formato programa de auditório, com os músicos representando personagens, serão desta quinta, 20, a sábado, 22, de graça, no teatro da casa.
Na ficção, ficou assim: os músicos do Art serão integrantes de um grupo chamado Os Bambas, que participam de um programa de auditório de 1968, algo no estilo do que viria a ser o The Voice, com jurados contundentes e apresentado pelo personagem Oscar de Menezes, vivido pelo ator Helder Renovato (que deixa bem evidente sua parcialidade na condução do concurso). Eles querem vencer o grande grupo do momento, os Originais do Samba, que de fato era a majestade, o primeiro conjunto de samba a pisar no Olympia, de Paris, antes que Mussum saísse para se integrar aos Trapalhões e outra potência, o Fundo de Quintal, revirasse o mistério do samba tudo de novo, de cabeça para baixo.
Uma artimanha de roteiro faz com que a linha do tempo avance de 1920 a 2000, passando pelos anos 90. Os Bambas incluem assim os sambas românticos de sua geração, lembrando de pagodes como Cheia de Mania, de Luiz Carlos, do Raça Negra; Vida Bandida, um dos únicos sucessos do grupo Um Toque a Mais; e O Teu Chamego, do Grupo Raça, desfeito, infelizmente, quando a festa começou. Alguma de Art Popular? “Não, preferimos não tocar nós mesmos, ficaria estranho”, diz Leandro. Talvez um excesso de pudor, já que foi o Art que levou aos 90 o suingue de Jorge Ben e dos Originais do Samba.
Mas isso tudo depois ou em meio a um roteiro que passa por Tiro ao Álvaro, gravada por Adoniran Barbosa, representante maior dos paulistas nos anos 1960 ao lado dos Demônios da Garoa; por Riachão (com Cada Macaco no Seu Galho, exemplar legítimo da mesma Bahia que produziu um dos sambas de divisão mais irresistíveis, o chamado samba duro, ou samba do Recôncavo Baiano); por Aos Pés da Santa Cruz (gravado por Orlando Silva e que estava na semente da bossa nova em 1959, no disco de João Gilberto); Não Adianta (o torpedo lançado pelo Trio Mocotó em 1977, uma obra deliciosa de um ritmo que os bailes de nostalgia de São Paulo chamaram nos anos 1980 de samba-rock e o Rio de Janeiro de sambalanço); e por instantes que, olhando bem de perto, são sambas também.
Tim Maia, que só não foi sambista por sua impossibilidade nata de ser fiel a qualquer linguagem, é lembrado com Meu Samba, menos conhecida, lançado em um disco de 1980. De Agepê, que estava em uma outra turma nos anos 80, considerado equivocadamente representante do pejorativo sambão joia de Benito Di Paula e Luiz Airão, será refeita Moro Onde Não Mora Ninguém. E Gilberto Gil, que estava na Tropicália de 1968 minando barreiras estilísticas juntando sambas com guitarras, será evocado com Parabolicamará, de 1992, um afro-samba de nascimento graças à reprodução na harmonia da frase do berimbau.
O Art Popular conta ao todo 34 anos de carreira, desde aqueles amigos se uniram pela primeira vez, em 1985, movidos pela paixão sobretudo aos Originais do Samba. Músicas como Pimpolho e Agamamou (com o suingue dos Originais sempre presente), em momentos diferentes da carreira, fizeram o grupo vender mais de 10 milhões de discos e a subir a um palco até 45 vezes por mês (sim, até três por noite). “As críticas dos anos 90 não levavam em consideração o fato de estarmos seguindo nossos sonhos”, diz o pandeirista Tcharlinho. Depois de assistir a um trecho do ensaio, quando eles tocaram no fabuloso estúdio montado na casa de Leandro Lehart, a reportagem apenas brincou: “E se os Bambas ficarem maiores do que o Art Popular?” Eles levaram a sério: “Deus te ouça”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.