Estadão

Arte e política se misturam em Uma Noite em Haifa

Amos Gitai tem um carinho especial por São Paulo. Evoca amigos – Leon Cakoff, Renata de Almeida, da Mostra de Cinema de São Paulo -, compara a metrópole a Haifa, em Israel, onde nasceu. "São cidades onde a mestiçagem é muito forte. São Paulo acolhe gente de todo o Brasil, e do mundo. Em Haifa, mais do que em qualquer outro lugar de Israel, coabitam árabes, palestinos, israelenses", descreve Seu mais recente filme, Uma Noite em Haifa, acaba de estrear nos cinemas brasileiros.

No entanto, o filme terminou de ser rodado em dezembro de 2019 – antes da pandemia de covid-19, portanto – e estreou no Festival de Veneza de 2020, há três anos. Nasceu da indicação de uma amiga, a atriz palestina Lamis Ammar. "Ela me desafiou, dizendo que, embora nativo, eu não conhecia Haifa. Para prová-lo, me levou a esse lugar, o Fattoush, um misto de bar, boate e galeria. O lugar, por si só, é utópico. Um refúgio. Acolhe a todos, sem distinção de gênero, nem raça."

Árabes e judeus, homens e mulheres, gays e lésbicas, radicais e moderados. Na trama do filme, Laila (Maria Zreik) é uma galerista que promove a exposição de um fotógrafo israelense. Por seus contatos, ela planeja levá-lo aos EUA, a Los Angeles. Dentro do bar, o espaço é de tolerância. Lá fora, campeia a violência.

<b>Olha o trem</b>

O filme abre-se no estacionamento, com a agressão ao fotógrafo/artista. Lá fora também ocorre algo curioso. Não há uma cena de externa em que um trem não esteja passando. "Tinha uma diretora de produção que controlava o movimento dos trens numa planilha. Ela anunciava que um trem passaria em 5, 10 minutos. Corríamos contra o tempo para filmar as cenas."

E por que esses trens ficaram tão importantes na mise-en-scène de Uma Noite em Haifa? "No início era só uma característica local que eu queria aproveitar. Mas depois os trens passaram a fazer parte do próprio sentido do filme. Quem está dentro dos trens, para onde vão essas pessoas? O filme é muito marcado por essa noção de espaço, de diversidade."

Gitai sempre foi atraído pela arquitetura e o espaço é personagem de todos os seus filmes. Neste, destaca personagens femininas que são fortes. Gitai e as mulheres. Não é mera coincidência. Gitai destaca-se, no panorama do cinema israelense, pela independência. É crítico em relação às instituições. Impossível não comentar com ele o que se passa atualmente no Estado de Israel.

Nas últimas semanas, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu concretizou seu desejo de reduzir os poderes da Justiça – que, por sinal, o investiga por crimes de corrupção. Misturando um pouco as coisas, o Festival de Cinema Judaico, que deve ocorrer em agosto, em São Paulo, privilegia este ano a produção das mulheres. Laila e as outras dominam o novo Gitai. Por que toda essa atenção às mulheres?

"São elas, hoje em dia, que se destacam na oposição a Netanyahu. Temos uma procuradora que não se intimida com as manobras do premiê e o mantém sob fogo cerrado."

<b>Medos</b>

Muito do que agora é clamor popular já foi abordado por Gitai em alguns de seus maiores filmes. A disciplina militar e a guerra em Kippur, a violência de ortodoxos em relação às mulheres em Kadosh e a origem da tensão com os palestinos a partir da chegada de colonos judeus em Kedma. Nesse novo momento de tensão política, não é difícil para Gitai fazer seu cinema crítico?

De forma mais objetiva, o repórter lança a provocação – ele não tem medo? "Perdi o medo quando servi o Exército, e foi justamente na Guerra do Kippur, em 1973, há 50 anos. Participava de um grupo de resgate e estava sobrevoando a Síria num helicóptero que foi atingido por um míssil e caiu. Poderia ter morrido, mas sobrevivi. Coincidentemente, era o dia de meu aniversário. Perdi amigos, mas principalmente perdi o medo. Viver e criar conjugam bem com arriscar-se." Quer dizer que Gitai nasceu de novo, já adulto, no dia de seu aniversário? "É o que sempre disse minha mãe. Que eu devia aproveitar essa chance."

Laila é casada. O tempo todo o filme discute arte e política. O marido, continuamente, interpela a mulher sobre o que está fazendo. Diz ao fotógrafo: "A política não é para amadores." Essa narrativa está sendo contestada nas ruas de Israel. Uma Noite em Haifa registra um momento anterior, mas recente. A discussão dentro do bar, da galeria está querendo sair para o mundo. Gitai gosta de dizer que faz filmes como cidadão, testemunhando a história do país. O bar/galeria do filme lhe permite antecipar/refletir sobre o que se passa em Israel.

Uma tal revolta, ele explica, é inédita. Ocorre justamente quando o Estado de Israel comemora seu 75º aniversário. Embutida no movimento, está a grande questão: o que fazer para impedir o processo de destruição? A votação de leis antidemocráticas não intimida os protestos. O movimento não enfraquece, fica mais forte. "A estratégia de Netanyahu é criar o caos, para controlar a situação. Mas, dessa vez, o caos é tão importante, e generalizado, que está escapando ao controle. Eis por que não sou completamente pessimista", diz Gitai. A utopia de Uma Noite em Haifa sinaliza sua resistência.

À maneira de Robert Altman, que adorava soltar sua câmera entre numerosos personagens que atravessavam seus filmes, Gitai, em Uma Noite em Haifa, filma nada menos de 18 figuras dramáticas. Seu cast é formado por atores palestinos e israelenses – Bahira Ablassi, Tom Baum, Tshahi Halevi, Makram Khoury e Amir Khoury. "Não conhecia a todos, mas para isso existem diretores de elenco. Formamos um grupo heterogêneo, mas muito integrado."

Para encerrar, ele confirma seu projeto de parceria com Walter Salles, da Videofilmes. Vão fazer um filme baseado nas cartas da mãe de Amos, Efratia Gitai. As cartas já foram editadas em livro no Brasil, Em Tempos como Estes. Mulher forte, moldada no feminismo e no socialismo, ela escreve: "Em tempos como estes não temos opção senão seguir em frente, e vivendo." Amos compartilha: "Almoçamos para discutir o projeto e Walter me disse que estava apaixonado por minha mãe."
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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