Um farol vermelho passado, mas o amarelinho não viu. Um troco a mais desapercebido pelo caixa. Uma viagem via aplicativo feita mesmo sabendo que não há saldo para a viagem. Os aplausos recebidos sobre o trabalho de outro. A nota azul sob a clássica cola baseado no conhecimento alheio. Um currículo muito além do que a pessoa é. Estes são exemplos simples que emergem durante nossos afazeres diários. Ora, quem nunca passou por isso. Melhor dizendo, quem não fez.
Estando em voga na contemporaneidade, a ética como uma das áreas da filosofia talvez nunca tenha passado antigamente como hoje num jogo de escolhas entre escolhas no dia a dia. Tratada com veemência desde dos primórdios da filosofia grega no século IV a.e.c, refletido tradicionalmente no período medievo, a ética como uma tentativa de se debruçar sobre o certo e o errado tem se tornado cada vez mais relativa, ou como podemos dizer líquida.
Apesar de nossa natureza moral, de nossos valores e virtudes apontarem para o que seria viável, nós brasileiros somos levados talvez por uma questão de preservação e sobrevivência a nos moldar de tal forma para não sermos responsabilizados por nossos atos. Quem já não ouviu casos de um produto vendido sem todos os detalhes? A venda hiperfaturada, mesmo com referencial de preços? Um imóvel locado sem ser mencionado seus vícios? A barganha e o ganho de negócios feitos por fora? A omissão para com o conhecimento alheio tem sido a artimanha das artimanhas.
O que dizer então sobre uso exacerbado do poder? Prejudicar ou beneficiar alguém não por seus méritos ou deméritos, mas sim a luz de um capricho que revela seu álter ego massageado. Kant, como filósofo mais conhecido por sua filosofia da moral hoje talvez estaria estarrecido. Sua herança deixada como uma filosofia da “ação que sirva de lei universal”, não cabe nesta era. Ou como diz Rubem Alves: só acreditamos no que os olhos veem.
Ouvimos entre as multidões discursos sob os pendões do “eu acho”, “minha opinião”, “minha visão”, “minhas regras ”. Aqui não se exclui o direito de expressão. Sim, é um direito pétreo, intocável como um dos fundamentos da democracia moderna, e diga-se passagem também brasileira.
A cultura brasileira, mesmo com suas cores, seu clima tropical, sua acolhida a visitantes, temos uma tradição, que não nos deveria orgulhar, de uma filosofia pelo menor esforço, da fuga do que nos dá trabalho e pela lei da vantagem. Isso vai de encontro como nosso modo de viver.
Com o discurso de ética líquida cada vez mais incorporada em nossa sociedade, de uma doutrina do jeitinho, têm nos tirado dos trilhos a direção de uma vida equitativa, senão qualitativa. O que é o certo ou errado? Não sabemos.
Se a máxima kantiana não nos seria por suficiente, pelo menos uma filosofia da empatia nos bastaria. Isso em teoria. A ética líquida ou o “jeito do jeitinho” tem mais haver com nossa vontade como potência, de nossa vontade sobre as formas de domínio, do que uma vida responsável pelo e para com o outro.
O equilíbrio entre os verbos querer, poder e fazer tão mencionados entre os pensadores em foco tem se tornado apenas um refrão, levados ao vento como paradas musicais, que se hoje estão em alta, mas amanhã esquecidos. Podem estar justapostos como modismo, mas não em ação. Os cenários são os mesmos: no universo do trabalho, nos relacionamentos, na educação, no direito, nas mídias, na saúde, na sempre em evidencia e não menos importante política.
Moldamos nossas atitudes conforme o espaço. Só mudam os atores, que quanto mais avançam em suas idades, mais se tornam especialistas na arte do jeitinho. Deixa a vida me levar, a vida leva eu, diria alguns.
Mais do que um complexo de regras de vivência, a ética como uma configuração de vida, deveria coroar o melhor d cada geração em meio ao seu tempo. Como a ápice no diálogo final no épico O resgate do soldado Ryan (Saving Private Ryan, EUA: 1998): “[…] diga que vivi bem. Diga que eu fui um bom homem! ” (Tradução livre). Esta deveria ser a apoteose de todo o ser humano.
Ser bom não é dizer sim a tudo. Não é concordar com a multidão e nem discordar das minorias. Ser bom a luz da ética, longe de sua liquidez, do jeito no jeitinho, de uma natureza egoísta, é viver de forma integra, completa, de honradez, de lealdade com a verdade e que eternize nossos passos na história, como referência a ser repetida no tempo e não mero jargão post-mortem em velórios e lápides. Relembrando o pensamento cartesiano, “é não tomar absolutamente nada de falso por verdadeiro”.
Antes do politicamente correto, é discutir e refletir sobre assuntos como aborto, eutanásia, distanásia, ortotanásia, políticas públicas, religião, epidemias, gênero, fome, miséria, famílias, felicidade, tristeza dentre outros a justa medida de seus limites com toda a parcimônia, e não apenas como meras polêmicas que ardem no primeiro momento, causando incêndios, mas por sua natureza se esvai por sua insolidez.
Finalmente, mesmo que o homem seja a medida de todas as coisas, a ética é creditada em estruturas morais do que se deve fazer e ser, mesmo que talvez esquecidos por alguns e sufocados por outros, mas que não se vale da vontade desmedida de tantos. É a prevalência vitória de uma vida que poderia se vã, mas que por enxergar além do jeitinho, optou por uma algo mais justo e equilibrado ainda que imperfeito.
Denis Batista de Souza é doutor em Ciências da Educação, especialista em Docência do Ensino superior – concentração formação docente e licenciado em filosofia plena e bacharel em teologia. Dentre outras designações na SEDUC SP, hoje é um dos Professores Coordenadores do Núcleo Pedagógico na DER – Guarulhos Sul. Ele é o autor do livro A odisseia do anônimo: fatos e histórias que não contaríamos a ninguém, pela kindle/Amazon.