Variedades

As duas vidas de José Bernnô, mecânico e pintor, ganha exposição

José Bernnô viveu apenas 63 anos e fez somente um individual em vida. Sete anos após a sua morte, a Galeria Estação decidiu pôr à prova a pintura do artista com uma nova mostra, bem organizada pelo pintor Marco Giannotti, amigo e ex-professor de Bernnô.

Não são poucas as obras que aderem a seu tempo de um modo tão imediato e ansioso que sofrem as mesmas agruras de roupas e cortes de cabelo: fenecem com a rapidez com que surgiram. A fotografia de Vik Muniz, acredito, padece desse mal. A denúncia da exploração do trabalho infantil (a série Sugar Children), em que jovens negros têm seus traços feitos com açúcar, um Guevara com contornos de feijão ou Elizabeth Taylor desenhada com diamantes em pó: tudo é igualado pela textura anódina do papel fotográfico. O que, afinal, os diferencia?

Basta imaginar uma pessoa cujas pernas estivessem condenadas a usar pela vida afora as calças Calhambeque, postas em voga pela Jovem Guarda. Pertencer a seu próprio tempo é um lema moderno e contemporâneo. O esforço para converter esse lema em linhas, cores e volumes vai muito além dos poderes da vontade e não há manuais para essa operação. De todo modo, convém antes de tudo, manter com seu meio de expressão um vínculo generoso, que recuse fazer da arte, qualquer arte, um instrumento de submissão de cores, sons, palavras ou movimentos corporais.
Quando Miró defendia para o artista “um estado de disponibilidade”, penso que era a isso que se referia. O grande (e ainda pouco conhecido) pintor holandês Bram van Velde declarou algo semelhante. “A maior parte das pessoas vive sob o signo da vontade. O artista é aquele que não quer.”

José Bernnô foi auxiliar de mecânico, desenhista de projetos e funileiro, profissão que nunca abandonou, embora sua única individual, no Estúdio Buck, em 2008, tenha bem-sucedida em todos os sentidos. Bernnô chegou também a elaborar alegorias para a Mocidade Alegre, tradicional escola de samba da Casa Verde, o bairro do coração do artista. E por muitos anos dedicou-se silenciosamente à pintura. Além de Marco Giannotti, também Paulo Pasta foi importante em sua formação.

Penso que essa vida de tantos percalços e incertezas lhe tenha facilitado chegar ao estado de disponibilidade preconizado por Miró e Bram van Velde. As cidades – sobretudo São Paulo – são a questão por excelência da pintura abstrata e meio geométrica do artista. E isso de maneira nada óbvia ou pitoresca, como acontece nas obras de Vik Muniz. A superfície rústica das casas humildes da zona norte, as cores de velhos automóveis – como aponta Marco Giannotti no catálogo – e a geometria precária dos bairros pobres aparecem em seus quadros, muito em virtude do pintor de carros, que conseguiu unir a tinta a óleo às resinas automotivas. E assim suas cores adquiriram um aspecto áspero muito distinto da pintura a óleo normal.

Num mundo em que as imagens da realidade parecem transformá-la em fantasma, a arte de Bernnô se coloca como um antídoto a esse delírio. E as cidades que podemos experimentar em seus quadros também se mostram na estrutura e nas cores das obras. A irregularidade do traçado urbano dos bairros mais afastados e da periferia se revela na trama acidentada das telas e nos contrastes ambíguos de suas cores – mais discretas aqui, estridentes e luminosas acolá. Mantidas as devidas proporções, há aí um Volpi atualizado, no qual as cores humildes do Cambuci se tornam os tons violentos do Capão Redondo, da Vila Brasilândia ou de qualquer periferia do mundo.

Nos sete anos que separam suas duas únicas individuais, penso que alguns problemas de sua arte também vieram à tona. Com frequência, delicadas linhas negras limitam as áreas de cor. Com isso, diminuem-se a expansão e o contraste de cores, com o que algo da precariedade da vida e do urbanismo da maioria das grandes cidades brasileiras também perde em intensidade e adquire uma feição levemente estável e pacificada.

Em pouco mais de uma década, José Bernnô fez uma das pinturas mais significativas do Brasil nos últimos tempos. Há artistas – Oscar Niemeyer, por exemplo – que viveram e produziram mais do que sua vitalidade estética aconselharia. Basta olhar para o desastre urbano chamado Memorial da América Latina. No caso de Bernnô, infelizmente para nós, deu-se o contrário.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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