Não é incomum que atores procurem no teatro papéis que sirvam para dar nova dimensão e credibilidade às suas carreiras. Na Broadway, galãs e mocinhas do cinema buscam reconhecimento ao montar clássicos. Aqui, a lógica também se repete, prioritariamente entre aqueles que construíram suas trajetórias na TV. Funciona como uma espécie de certificado de que, por trás da fama, existe talento.
Em Através de um Espelho, Gabriela Duarte leva à cena um drama de Ingmar Bergman. Em sua segunda temporada, a peça traz a intérprete na pele da atormentada Karin, mulher recém-saída de uma clínica psiquiátrica, que busca se recuperar do abalo emocional passando férias em uma ilha, ao lado da família: o marido Martin (Marcos Suchara), o irmão caçula Max (Lucas Lentini) e o pai David, conduzido com equilíbrio por Nelson Baskerville.
Concebida originalmente para o cinema, em 1961, a trama foi adaptada para o palco por Jenny Worton e mereceu recente montagem em Nova York, com Carey Mulligan como protagonista. É compreensível que a história de Karin soe tão atraente às atrizes. O papel que, nas telas, pertenceu a Harriet Andersen permite um sobrevoo sobre a solidão, o desamparo, o narcisismo e a insensatez.
Em sua interpretação, Gabriela soube evitar os extremos da representação da loucura. Pontua o desequilíbrio, sublinhando o aspecto frágil e alquebrado da personagem. Condenada à mesma doença que acometeu sua mãe, essa jovem mulher tem consciência da queda iminente. Sabe que a razão lhe escapa dia a dia. Precisa cercar-se de afeto, mas anseia justamente pelo único olhar que nunca está de fato voltado em sua direção, o do pai.
O tema surge com frequência na cinematografia do diretor sueco. Em Sonata de Outono, filme de 1978, a filha também se ressente da ausência da mãe, sempre focada em seus próprios anseios e indiferente às necessidades alheias. Na base dessas relações conturbadas, encontramos invariavelmente uma cegueira em relação ao outro. Uma constatação terrível já que se ultrapassa o âmbito de uma afeição não correspondida. Estamos diante de seres que não são sequer percebidos pelo seu objeto amoroso. Apenas gravitam em sua órbita, desdobrando-se em cuidados e zelos inúteis.
Nessa versão brasileira, a encenação de Através de um Espelho coube a Ulysses Cruz. Com extensa e pródiga trajetória, o diretor costuma valorizar o impacto visual em suas criações. Em tempos de cenários enxutos e minimalistas, Cruz envereda pelo caminho oposto. Uma pretensão de exuberância atravessa o seu olhar. O que, ao menos neste caso, não se revela como a opção mais adequada ao material escolhido.
É imensa a influência do pensamento de August Strindberg sobre a estética de Bergman. Típica da música, a formação camerística serviu ao teatro de Strindberg para que explorasse questões do inconsciente de forma intimista, dando ao espectador a sensação de observar, como um voyeur, o que se passava no interior da casa burguesa. O conceito tornou-se crucial também para o diretor de O Sétimo Selo. Em seus títulos, um mesmo tema se desdobra de diferentes maneiras, explorado por um conjunto diminuto de intérpretes.
Quando filmava, Bergman privilegiava os closes. A câmera colada ao rosto dos atores evidenciava aquilo que os planos abertos dificilmente seriam capazes de flagrar. Em grande medida, é da ausência dessa “intimidade” que se ressente a atual montagem. Luz (Domingos Quintiliano) e cenografia (Lu Bueno) servem mais ao caráter espetacular, aparentemente valorizado por Ulysses Cruz, do que propriamente à criação de uma atmosfera de cumplicidade entre público e cena.