Estadão

Banho com água salgada e casas destruídas pela erosão são rotina para moradores do Bailique

Enquanto as autoridades repetem soluções emergenciais ano após ano, os moradores das 52 comunidades do Arquipélago do Bailique buscam formas de se adaptar à difícil realidade de viver de frente para o maior rio de água doce do mundo e não dispor de água potável para atividades cotidianas, além de viver sob risco constante de ver as próprias casas serem engolidas pela erosão. Em novembro, quando a reportagem visitou quatro comunidades do Bailique, os relatos da população mostraram que o desafio de morar nas ilhas é diário. "A gente tem que se adaptar ao ritmo da natureza, mas não tá fácil", resumiu a professora Érica dos Santos Lopes, que se desloca semanalmente entre as ilhas para dar lecionar na comunidade Livramento.

Nas comunidades, de longe se avista o azul das caixas d água usadas para armazenar água. Segundo Érica, as famílias costumam ter cinco ou seis unidades de 2 mil a 3 mil litros para guardar água da chuva durante o período chuvoso, entre os meses de dezembro a julho. A água armazenada precisa ser tratada com kits distribuídos pelo governo e pode ser usada para cozinhar ou nas plantações. Porém, com o prolongamento dos meses de seca, a água armazenada dura cada vez menos.

"As pessoas estão bebendo água salgada durante quatro meses agora. Era um mês e meio por ano que a água ficava salobra", conta Fábio Vilhena Júnior, 36, que viveu no Bailique até 2005. Morando em Macapá, a dez horas de barco das ilhas, ele decidiu abandonar o arquipélago principalmente devido à falta constante de energia. "A erosão derrubava os postes, ficamos muito tempo sem energia lá. Aí resolvemos vir embora", explica. Hoje, o maior problema é a salinização da água, diz ele. "Quando eu morava lá, já tinha água salgada, mas só quando chovia menos. Na Vila Progresso, quase não chegava água salgada, mas agora é o tempo todo", relata o ex-morador, cuja mãe ainda mora no Bailique.

Pesquisador-chefe dos Institutos SENAI de Inovação em Química Verde, o biomédico Antonio Fidalgo Neto está à frente do projeto de uma estação flutuante de dessalinização da água no Bailique por meio de uma usina a ser instalada em uma balsa. "Não é possível construir nada nas margens da região, porque eventualmente no ano seguinte não tem mais nada. Por isso pensamos em colocar essa estação numa balsa, além de garantir minimamente uma mobilidade no eixo Norte-Sul, onde está mais de um terço da população", explica o pesquisador.

Fidalgo admite que o objetivo é resolver o problema imediato de quem vive nas ilhas, mas reconhece que não é possível enfrentar os fenômenos hidrológicos que estão causando a intrusão salina na Foz do Amazonas. Na prática, o rio tá perdendo vazão e o oceano está invadindo, resume o biomédico. "Podemos dar um jeito de fornecer água, mas o fenômeno em si, somos muito pequenos e pouco poderosos para resolver esse problema. Os impactos certamente vão acontecer", avisa.

Moradora da comunidade Macedônia, a pescadora Edilan Vilhena Vieira, 39, acredita que a solução para minimizar esses impactos passa por, além de fornecer água potável, remover os habitantes das margens para dentro das ilhas. Mas será necessária uma política territorial para aquisição de áreas mais seguras com recursos públicos. "Precisa ajudar o povo a tentar recuar mais para trás, porque ainda tem um pouco de espaço para o lado de lá, mas tem que comprar terra", sugere Edilan, que trabalha como servente na escola local.

Durante a visita da reportagem à comunidade, na Ilha do Curuá, ela contou que a ponte que usamos para acessar a ilha já era a terceira a ser construída. "A primeira e a segunda já foram", disse a ribeirinha, referindo-se ao efeito da erosão, que também já levou a casa de Edilan. "Se você for ver o local onde era minha casa, não aparece mais nada. Tem gente que já perdeu a casa com tudo dentro, porque quando cai não é aquele pouquinho de barranco, não. Cai mesmo, para levar quase tudo", relata.

O pescador Darley Santana Sarges conta que já construiu três casas que a erosão jogou no rio. "Eu não vou fazer outra casa, não. Já fiz três e caíram. O jeito é mudar para outro lugar", resume. A merendeira Célia Ribeiro, 50, já está construindo a quarta casa na comunidade Ponta da Esperança: "meu primeiro sítio já foi, e (a erosão) tá pertinho do segundo e chegando aqui no terceiro já", relata.

Mesmo assim, muitos moradores resistem à ideia de deixar o Bailique. "Com toda sinceridade do mundo, eu sou ribeirinha nascida e criada aqui. Pensar em ir embora, só se for realmente o último caso, se não tiver como ficar", afirma a pescadora Edilan. A merendeira Francinete Ferreira, que vive na comunidade Livramento, reconhece que as dificuldades de morar no arquipélago estão aumentando, mas não pensa em sair.

Pesquisadora da região há quase duas décadas, a geóloga Valdenira Ferreira dos Santos confirma o que Francinete percebe no dia a dia. "A própria natureza vai reorganizar o espaço e nós temos que estar preparados em toda a área costeira para essa reorganização", avisa Valdenira. Porém, quando se trata de locais onde há pessoas vivendo, é preciso fazer um planejamento adequado, alerta. "Essas mudanças vão implicar na vida das pessoas e na economia. É preciso ter informações para embasar a instalação de equipamentos sociais e investir em desenvolvimento socioeconômico no Bailique."

* Esta reportagem foi apoiada pelo Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário.

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