A trilha é o melancólico e dolorido Adagietto da Sinfonia nº 5 de Gustav Mahler, à medida que a câmera se aproxima da imagem de um Leonard Bernstein envelhecido, cansado, esperando que a equipe de televisão prepare seu equipamento. Em off, uma voz embargada: “No final da vida, ele já não tolerava mais a si mesmo. Dizia: estou farto de Leonard Bernstein. O artista havia se tornado uma indústria. E não conseguia se livrar dela”.
Tudo na cena final do documentário de Georg Wübbolt, Larger Than Life, parece meticulosamente pensado. Foi regendo as sinfonias de Mahler que Bernstein inseriu seu nome em definitivo no panteão dos grandes intérpretes. E fez isso se transformando em uma marca midiática inédita, desde que nos anos 1950 entendeu que a televisão poderia ser um veículo de divulgação para a música clássica. Mas à certa altura a criatura voltou-se contra o criador: havia espaço para qualidade artística em meio a essa indústria, em especial para um músico que, como autor, frequentou tanto os palcos da Broadway como as salas de concertos?
“Bernstein foi uma personagem tão imensa que as pessoas às vezes se distraíam com sua persona”, diz a maestrina Marin Alsop, diretora musical da Osesp e sua ex-aluna. “Mas desde sua morte acho que já somos mais capazes de apreciar seu trabalho, suas composições brilhantes, seus pensamentos sobre o aprendizado interdisciplinar, seu conhecimento dos estilos musicais, o gênio com que unia tudo isso”, completa, oferecendo uma pista a respeito de qual tem sido a tônica do meio musical ao longo deste ano, quando se comemora o centenário de nascimento do maestro e compositor norte-americano, que será completado no sábado, 25.
A indústria continua viva como nunca – em especial com lançamentos de CDs do início de sua carreira, com ele como regente à frente da Orquestra Filarmônica de Nova York. Mas até agora é sua atividade como compositor que tem sido o principal foco das homenagens. O selo Naxos lançou uma caixa com toda a sua obra (regida por Alsop, com grupos como a Osesp e a Sinfônica de Baltimore); Antonio Pappano acaba de gravar na Itália suas três sinfonias; Yannick Nézet-Séguin registrou na Filadélfia uma nova versão da Missa. O fato de que três grandes nomes da nova geração de regentes tenha se voltado à sua música é significativo, e se junta a outros CDs com trechos de seus musicais, balés e trilhas para cinema, como West Side Story, adaptação para a Nova York dos anos 1950 do Romeu e Julieta de Shakespeare, Dybbuk, inspirado em texto da tradição judaica, ou On the Town, estrelado por Frank Sinatra.
“O que me impressiona na música de Bernstein é a capacidade com que ele dialoga com a tradição da música popular americana, de maneira natural, espontânea, mas com grande sofisticação ao combinar o jazz com a linguagem sinfônica, por exemplo”, afirma o maestro Roberto Minczuk, que rege as danças de West Side Story e outras obras do autor na sexta, 24, e no sábado, 25, em uma Gala Bernstein, no Teatro Municipal de São Paulo. Fabio Mechetti, diretor da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, concorda, vendo em sua obra uma “natural absorção de elementos da música popular”. “Certamente é na diversidade de gêneros que sua criação se destaca”, afirma o regente, que realizou um Festival Bernstein em Belo Horizonte.
Mechetti fala em West Side Story como o maior musical da história da Broadway. Não está sozinho na avaliação. “Em West Side Story, ao escrever música para bailarinos cantarem, ele colocou a dança em um patamar acima dentro do teatro musical. E buscou em Shakespeare a inspiração para uma história que denunciava o racismo na sociedade americana”, coloca o maestro Luis Gustavo Petri, que, no início dos anos 2000, fez a estreia brasileira de outra obra do compositor para o palco, Candide, inspirada em Voltaire.
Linguagem pessoal. A produção sinfônica de Bernstein, no entanto, demorou um pouco mais a ser aceita, mas encontra em Isaac Karabtchevsky um de seus grandes defensores: o maestro as interpretou este ano com a Sinfônica Heliópolis e a Petrobrás Sinfônica. “São obras que projetam seu mundo interior, suas angústias, sua religiosidade e profundo misticismo”, explica o maestro brasileiro. Na Sinfonia nº 2, por exemplo, ele adapta musicalmente o poema A Era da Ansiedade, de W.H.
Auden, que fala das angústias de quatro jovens americanos nos anos 1940.
“É como se ele fosse um dos quatro”, diz o pianista Ronaldo Rolim, jovem brasileiro radicado nos EUA, que tocou a peça em Belo Horizonte no início do mês. “Ele enxergou no poema a crise de fé que ele mesmo sempre teve, uma fé religiosa, mas também nas pessoas, nas instituições, nos governos, na paz.”
O caráter pessoal dessas criações, no final das contas, diz Mechetti, é o ponto de contato entre sua atividade de regente e compositor. “O que ele acreditava como autor era nada mais do que ele era enquanto maestro: certo ou errado, ele se manifestava com total expressão artística, com profunda convicção na habilidade da música em transformar emocionalmente as pessoas.”
No pódio da regência, complementa Karabtchevsky, “ele era pura música, projetada dentro de conceitos que extrapolavam a trivial definição dos compassos”. E o mesmo vale para sua atividade como professor, recorda Marin Alsop. “Ele era um ser humano caloroso, afetivo. Ele amava as pessoas. Ele me apoiava, exigia, e sempre me levava a ser o melhor que eu podia ser. E falava sempre sobre temas amplos, nunca se perdia em pequenos detalhes técnicos. Era um grande contador de histórias e entender a narrativa de uma peça, assim como nossa responsabilidade como mensageiros dos compositores, era primordial.”
GALA BERNSTEIN
Teatro Municipal de São Paulo. Praça Ramos de Azevedo, s/nº. 6ª (24) e sáb. (25), às 20h.
R$ 20 a R$ 80
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.