Durante quatro anos, o presidente Donald Trump foi cobrado publicamente por inflamar extremistas, incentivar o nacionalismo e se recusar a condenar o racismo nos Estados Unidos. Em seu mandato, especialistas e políticos de oposição alertaram para o crescimento da intolerância no país, que foi às urnas em novembro sob temor de violência civil.
As cenas da invasão do Capitólio por extremistas pró-Trump explicitam o crescimento da tensão de um país que espera viver dias mais calmos com a posse de Joe Biden, nesta quarta-feira, mas carregará as cicatrizes da divisão.
"Tirar a figura polarizadora por si só não apagará a polarização e a divisão", afirma Jennifer McCoy, professora de ciência política da Universidade do Estado da Geórgia e especialista em democracia e polarização. "A desconfiança e a antipatia entre os dois partidos permanecerão e os apoiadores de Trump continuarão a se sentir enganados pelos democratas e por republicanos que consideram fracos e desleais", afirma.
Desde 2019, especialistas têm apontado o crescimento nos EUA dos grupos extremistas que defendem o nacionalismo e a supremacia branca – em oposição a negros, judeus e muçulmanos.
Durante seu mandato, Trump encorajou extremistas de direita e buscou normalizar ataques, comparando atos de racismo com manifestações comuns. Depois da invasão ao Congresso americano no dia em que os deputados certificaram a eleição de Biden, o esquema de segurança em Washington foi redobrado. A região do National Mall, onde fica o Congresso, teve seus acessos fechados pelo serviço secreto. O AirBnB interrompeu as reservas na cidade para dificultar a hospedagem de extremistas na capital americana e aeroportos terão fiscalização extra de armas em bagagens.
Mas a polarização na sociedade americana extrapola os limites dos grupos extremistas. Na véspera da eleição, pesquisa do instituto Pew Research mostrou que eleitores democratas e republicanos não costumam dialogar: oito em cada dez americanos dizem que não têm nenhum ou têm apenas "alguns" conhecidos que votariam em um candidato diferente.
A plataforma política de Biden e sua vice, Kamala Harris, foi centrada na promessa de "curar" o país do que o democrata chamou de "era da demonização" e das divisões. Biden prometeu trabalhar pelos eleitores de Trump tanto quanto para os seus. Mas mesmo dentro do Partido Democrata – e entre eleitores no curso da campanha – a convergência em torno do nome de Biden tinha um foco: vencer Trump. A partir da chegada ao poder, o democrata deve enfrentar os dilemas de uma sociedade profundamente dividida, em que mesmo a sua base eleitoral convergiu apenas temporariamente.
"Não querer o drama que Trump causa, as tempestades provocadas por ele no Twitter, é diferente de trabalhar pela unificação. A polarização extrema não é novidade na sociedade americana", afirma Gary Nordlinger, estrategista político e professor da American University, em Washington.
Para Christian Davenport, professor de ciência política da Universidade de Michigan, e Jennifer McCoy, enfrentar a divisão da sociedade exige reduzir a desigualdade econômica no país. A vantagem, diz Davenport, é que durante o governo Trump houve mais ativismo social e conscientização sobre a importância da democracia. "Se eles não resolverem as queixas que deram origem a uma figura como Trump – desemprego, salários estagnados e desigualdade, outra figura como ele vai emergir", afirma McCoy.
Segundo ela, os republicanos também terão papel decisivo no apoio ao futuro governo e as consequências para os cidadãos. "Os republicanos vão obstruir a agenda do Biden, como fizeram com Obama, e lançar mão de mais tentativas de supressão do voto para ganhar poder restringindo a votação em seus oponentes?", questiona a professora.
"Aprendemos mais sobre democracia e instituições do que durante o mandato de Obama. Em parte, porque muitas pessoas sentaram e ficaram esperando que Obama resolvesse os problemas na época. A parte negativa é que muito dessa conversa de unificação foi em torno de como tirar Trump em vez de como enfrentar o problema, as desigualdades", afirma Davenport.
Apesar da derrota na eleição, Trump conseguiu ampliar sua base eleitoral e conquistar 11 milhões de votos a mais do que obteve em 2016. Com 74 milhões de votos (46,8% dos eleitores de novembro), o republicano é cotado como favorito do Partido Republicano para a disputa presidencial de 2024 e seu capital político se tornou uma ameaça a parlamentares da sigla, que hesitaram em reconhecer a vitória de Biden.
Mas os desdobramentos após a eleição – com a insistência do presidente na retórica da fraude eleitoral e o uso da máquina governamental para tentar impedir o reconhecimento da vitória de Biden, que culminaram na invasão do Capitólio – enfraqueceram a figura de Trump.
"A semana passada foi a gota dágua. Trump perdeu poder. Ainda que ele não concorresse em 2024, iria se aproveitar do drama ao redor de sua saída durante os próximos quatro anos, mas mesmo os republicanos ficaram horrorizados", afirma Nordlinger. Trump sairá da Casa Branca com o nível mais baixo de popularidade de seu mandato (29% de aprovação). O apoio entre republicanos é de 60%, uma queda na comparação com o seu primeiro ano como presidente (84%).
O presidente é alvo de um segundo processo de impeachment por incitação à insurreição. Desta vez, diferentemente do que ocorreu em 2019 durante a primeira tentativa de remoção do presidente, os republicanos não formam um coeso bloco de apoio a ele. A sessão do Senado para julgá-lo deve ocorrer após a posse de Biden. O impeachment de Trump, portanto, teria como efeito concreto não sua remoção, mas a retirada de seus direitos políticos e a impossibilidade de ele se candidatar em 2024.
Para Jennifer McCoy, Trump deve perturbar o Partido Republicano com tentativas de intimidação dos republicanos e ameaça desacreditar seus opositores junto a sua base fiel. As divisões sociais não foram criadas por Trump, mas permitiram que ele chegasse à Casa Branca com a promessa de proteger os americanos de ameaças externas, como imigrantes. Sem resolver as questões de fundo, segundo os especialistas, a sociedade seguirá rachada e a frágil união em torno do nome de Biden deve ruir.
"Infelizmente, parte do apelo de Trump também foi em torno do ressentimento racial e sentimento anti-imigração. Se os americanos não aprenderem a viver em uma democracia multirracial com justiça para todos, não conseguirão superar essa divisão. Se Trump estiver fora de cogitação (na próxima eleição), é provável que surja um outro líder que usará a mesma linguagem polarizadora, populista e nativista para atrair esses eleitores", afirma McCoy.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>