Variedades

Bossa Nova universal

Amoroso está para a obra de João Gilberto como Kind of Blue para a de Miles Davis: o ápice da sofisticação musical de dois gênios que revolucionaram a música mundial. Se para chegar até sua joia do jazz modal o trompetista americano teve antes de passar pelo bebop e pelo cool, João precisou condensar o samba e inventar a bossa nova (junto com Tom Jobim) até atingir a quintessência de sua alquimia com o LP de 1977, que será relançado no mês que vem pela Polysom.

Nada sobra e nada falta no disco. É o mais eclético e universal dele, tem a bossa nova como linha mestra, mas se expande para outras vertentes sonoras e outras línguas, numa mistura que o gênero humano, na ausência de um termo mais preciso, se acostumou a chamar de jazz. Na primeira faixa, um dos pilares da canção americana: S Wonderful, dos irmãos George e Ira Gershwin, para estabelecer de cara as conexões entre as duas melhores escolas de música popular do século 20.

Além do inglês, João também se exercita em italiano e espanhol e promove, à sua maneira, dois achados. As versões dele para o piano-bar Estate, de Bruno Martino, e o bolero Besame Mucho, de Consuelo Velásques. Com harmonizações refinadas e arranjos surpreendentes, elas se transformaram em standards de jazz, replicados posteriormente no repertório de várias estrelas mundiais.

“Besame Mucho foi uma surpresa entre os que achavam até então que João só cantava coisas recherchées – e não podia haver nada menos recherchée do que Besame Mucho, todo mundo conhecia”, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro.

A mais recente estrela a homenagear João foi a pianista canadense Diana Krall, que gravou Besame Mucho em 2001 na interpretação gilbertiana. No mesmo álbum, ela também reverenciou o brasileiro reproduzindo a versão dele para S Wonderful.

“João deixou os americanos fascinados com sua gravação da canção dos irmãos Gershwin. Ele revolucionou todas as demais interpretações. A batida é tão forte, tão marcante, que, mesmo João cantando em inglês um clássico americano do final dos anos 20, aquilo soa como Brasil”, afirma o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello, amigo do cantor.

“Gravar S Wonderful em inglês com sotaque baiano pode parecer uma decisão corajosa, mas apenas refletia um velho hábito de João Gilberto na intimidade, de cantar canções americanas – outra que ele adorava era Day In, Day Out. Numa enquete promovida pelo José Domingos Rafaelli em 1952, ele citou seus dois cantores americanos favoritos: Sinatra e Doris Day. Seguindo, aliás, o que, na época, era uma tendência geral no Brasil”, lembra Castro.

Zuza destaca também a intervenção conceitual e a habilidade musical de João em Estate. “É a busca de um acorde que possa caber nessa ideia que ele queria do minimalismo.” Transcorridos 41 anos do lançamento do disco, Zuza diz que ainda o escuta quase diariamente. “Sou muito ligado ao Amoroso, entre outras coisas, por ter convivido com o João em Nova York à época do lançamento, em 1977.”

“Amoroso é João Gilberto em toda a sua glória de inventor e de mestre de um estilo inovador de cantar e de tocar violão”, diz o compositor, jornalista e crítico musical Nelson Motta.

Muitas piadas foram feitas ao longo do tempo sobre a pronúncia de João nos outros idiomas, especialmente em inglês e espanhol. Uma delas diz que ele canta “muintcho” em vez de “mucho” e que seu “inglês era arretado” (João é natural de Juazeiro). Motta e Zuza afirmam que tudo foi intencional, para que as palavras soassem em harmonia com o ritmo.

Zuza, no entanto, lembra que João Gilberto tinha mesmo dificuldade de se comunicar nos EUA. “Quando estive com ele em Nova York, no primeiro encontro, ele me disse aliviado: Faz um favor, pede uma pizza.”

Amoroso foi gravado em Nova York, teve o compositor alemão Claus Ogerman (1930-2016) na regência e nos arranjos e contou com um time de músicos americanos: Grady Tate e Joe Correro na bateria, Jim Hughart no baixo e Ralph Grierson nos teclados. A produção ficou a cargo de Tommy LiPuma (o mesmo que mais de duas décadas depois produziria o disco de Diana Krall).

Ogerman já havia trabalhado com Tom Jobim e se notabilizara nos EUA por dar uma roupagem sofisticada à bossa nova, com o uso de cordas e arranjos delicados.

Apesar da excelência das três faixas que não são cantadas em português, Zuza diz que sua preferida no disco é Caminhos Cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendonça. “É uma obra-prima”, diz ele. De Jobim também estão no disco Retrato em Branco e Preto, Triste e Wave, esta última foi o passaporte para que João voltasse a fazer sucesso no Brasil. Completa o álbum Tintin por Tintin, de Haroldo Barbosa. “Não sei se é o melhor disco dele, mas, com certeza, é o mais bonito”, afirma Zuza.

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