Para os que ainda eram crianças em 1986, David Bowie talvez seja – sempre – o rei dos Goblins que, em Labirinto, de Jim Henson, sequestrava o irmão de Jennifer Connelly e a forçava a adentrar no labirinto do título, para tentar resgatá-lo. O filme não deixava de ser uma variação de Alice no País das Maravilhas, escrita pelo Monty Python Terry Jones, produzida por George Lucas e dirigida pelo pai dos Muppets. Fracasso de público, virou cult, mas não é filme que faça a cabeça dos cinéfilos. Se é verdade que Bowie foi o camaleão do rock, e deixou sua marca na música, na moda, no comportamento e até no cinema, o melhor do astro será encontrado em filmes mais autorais, ou de outro calibre.
Em seu lendário álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust, de 1972, Bowie esculpiu uma persona andrógina que, quase 30 anos depois, serviu de base para o tributo de Todd Haynes ao glam rock. Velvet Goldmine, com sua opulência audiovisual e a estrutura à Cidadão Kane, fez de Jonathan Rhys-Meyers um astro pop bissexual que evolui na tela como se fosse o próprio Bowie, com sua máscara de purpurina. Mas se trata de um clone. Bowie himself atravessa filmes transgressores como O Homem Que Caiu na Terra, de Nicolas Roeg, de 1976, Furyo – Em Nome da Honra, de Nagisa Oshima, de 1983, Fome de Amor, de Tony Scott, também de 1983, e Basquiat, de Julian Schnabel, de 1996.
Como jornada iniciática – de um alienígena na Terra -, O Homem talvez seja uma ficção científica tão visceral quanto 2001, o clássico de Stanley Kubrick. Bowie aterrissa na Terra em busca de água, adquire poder e até uma mulher, mas é perseguido pela culpa de haver deixado sua família morrendo de sede num planeta distante. Em Furyo, como oficial inglês prisioneiro dos japoneses, desperta um desejo proibido no comandante do campo, interpretado por outro ícone da música, Ryuichi Sakamoto. Por exigência dramática do papel, Bowie canta – e desafina, o que só um ator de verdade faria, sem prejuízo de sua outra persona, como cantor. Em Fome de Viver, Catherine Deneuve e ele são vampiros que precisam se alimentar do sangue da jovem Susan Sarandon para sobreviver na Nova York chic – e contemporânea. Tony, irmão de Ridley Scott, antecipou de quantos anos, 30?, o homoerotismo da série True Blood. Em Basquiat, cinebiografia do grafiteiro que saiu da rua, teve uma ascensão meteórica no mercado das artes visuais e morreu de overdose de heroína aos 28 anos, Bowie rouba a cena de Jeffrey Wright, que faz o protagonista, no papel de Andy Warhol. Provavelmente só Andy seria mais Warhol que ele.
E não se pode esquecer de Apenas Um Gigolô, de David Hemmings, 1979, em que faz um oficial prussiano que, após a 1.ª Guerra, tenta várias profissões até descobrir que sua vocação é ser gigolô na decadente Berlim pré-nazista. Nunca houve gigolô menos macho, mais ambivalente na tela. O filme possui a fama de ser subproduto de Cabaret, de Bob Fosse.
Ficou meio incompreensível depois que a empresa distribuidora cortou 42 minutos (42!) do material editado, mas o clima perverso mantém-se graças a Bowie, a Sydne Rome (como sua prostituta preferida) e à velha Marlene Dietrich, em sua última aparição na tela, cantando o tema Just a Gigolo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.