Hoje parecem águas passadas, mas Jacques Lacan (1900-1981) foi não apenas o mais influente psicanalista de seu tempo, mas figura incontornável da cultura. Para evocá-lo, a Versátil lança este ótimo Jacques Lacan e a Psicanálise, contendo três DVDs sobre (e com) o analista francês.
São eles, dois documentários – Um Encontro com Lacan e Lacan: a Psicanálise Reinventada – e o registro, editado, de uma das célebres palestras, esta proferida em 1972 na Universidade Católica de Louvain. Os dois primeiros são importantes para situar a figura no quadro da psiquiatria, da psicanálise, mas também da cultura.
Neles, o próprio Lacan aparece, mas de maneira episódica. O terceiro dá, por assim dizer, a palavra ao personagem. E, vendo-o e ouvindo-o, podemos ter ideia da impressão que causava sobre suas plateias. No total dos três filmes são 169 minutos, que constituem uma introdução avançada ao universo de um dos teóricos mais estimulantes do século 20.
Em Um Encontro com Lacan, o diretor, Gérard Miller, parte de um ponto de vista privilegiado para abordar o autor. Gérard é irmão de Jacques-Alain Miller, nome que é cheio de significados para os lacanianos de todo o mundo (e existe algo como uma internacional lacaniana, na qual a América do Sul desempenha papel importante).
Jacques-Alain Miller, para situá-lo, era um estudante de tendências maoistas quando conheceu o mestre. Aproximou-se dele, a ponto de desposar uma de suas filhas. Na condição de genro, recebeu o legado do sogro e administrou-o como lhe pareceu melhor. É o editor dos famosos Seminários de Lacan, que foram saindo, a conta-gotas, pela editora francesa Seuil. Vários já foram publicados no Brasil, pela Zahar. Mas lacanianos dissidentes (e eles existiam, como existiam nos anos 1960 as várias frações de esquerda) entenderam que a edição dos seminários e o ritmo de publicação dos mesmos não eram adequados. Em represália, circularam várias cópias independentes da transcrição dos cursos de Lacan dados no Hospital de Saint-Anne e depois na École Pratique des Hautes Études, em Paris.
Essa polêmica não consta dos filmes. No entanto, a posição privilegiada permite a Gérard Miller lançar um olhar bastante próximo do personagem. Mesmo partindo de uma recordação pessoal, uma viagem de Lacan a Veneza, quando ele cisma de visitar uma igreja, fechada, até que sussurra algo no ouvido do sacristão e as portas, antes cerradas, se abrem como por milagre. O que teria dito o psicanalista ao até então irredutível guardião? Segredo.
Mas a anedota serve para franquear passagem a esse “dom” da palavra de que Lacan seria portador. A lenda fala em intervenções miraculosas, simples palavras capazes de mudar vidas. Mas Gérard não fica na teoria e tem a boa ideia de ouvir pessoas que se analisaram com Lacan muitos anos atrás. Há casos espantosos, mas todos, sem exceção, acham, em retrospecto, que valeu a pena, mesmo com as “excentricidades” do analista. Estas se tornam lenda no endereço em que atendia, o mitológico 5, rue de Lille. Um deles, ex-sacerdote, conta que, na primeira entrevista, Lacan lhe perguntou como sobrevivia, monetariamente. O homem lhe disse que sua ordem lhe dava uma determinada soma para sobreviver durante um mês. Lacan então exigiu que ele trouxesse essa soma… a cada consulta! Outros falam também do preço exorbitante. Mas um ex-analisando conta que frequentou o consultório um ano inteiro sem pagar. Fala-se também das sessões curtas, interrompidas no “tempo lógico” e não na artificial cronologia estabelecida pela Associação Internacional de Psicanálise, fundada por Freud.
Felizmente, essas atitudes são contextualizadas dentro das novas perspectivas propostas pela psicanálise. De modo didático (mas não chato), alguns conceitos-chave do lacanismo são explicados. As categorias do Imaginário, Simbólico e o Real, a Fase do Espelho, o recurso a outros saberes, como a topologia e os nós borromeanos.
Tudo isso entremeado a informações de ordem biográfica. A família católica, os estudos de medicina, a psiquiatria e a tese, sobre a psicose, que lhe valeu a amizade dos surrealistas. Uma presença importante nos filmes é a de Elizabeth Roudinesco, biógrafa e estudiosa de Lacan.
Tudo isso é muito bom, informativo, rigoroso, dentro dos limites naturais de se dar conta de um pensamento complexo pouco mais de duas horas de filmes. Mas, talvez, a cereja do bolo seja mesmo Lacan em sua palestra em Louvain. Podemos então ter ideia do seu carisma, do fascínio que exercia sobre o público, mesmo quando este tinha dificuldade de acompanhar o vertiginoso pensamento articulado pelo analista. Há um momento em que Lacan é interpelado por um jovem, que se torna progressivamente veemente, até partir para o ataque físico. Suas palavras produziam mesmo efeitos inesperados. Até mesmo para ele.
JACQUES LACAN E A PSICANÁLISE
Direção: Gérard Miller, Elisabeth Kapnist, Françoise Wolff
Preço: R$ 49,60
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.