Variedades

Brasil expõe a cara em documentários

Dois belos documentários brasileiros premiados no Rio – Futuro Junho, de Maria Augusta Ramos, e Betinho – A Esperança Equilibrista, de Victor Lopes – estão entre as maiores atrações desta segunda-feira na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na capital. O filme de Maria Augusta venceu o Redentor de direção, outorgado pelo júri oficial presidido por Walter Carvalho. O de Lopes ficou com o prêmio do público. Há mais um filme de Maria Augusta para se ver nesta segunda-feira, 26. É Seca, e no fim da sessão haverá debate com a diretora.

No vazio provocado pela morte de Eduardo Coutinho, pode muito bem ser que Maria Augusta Ramos seja hoje a maior documentarista brasileira. Sempre existe um João Moreira Salles, que trabalha, lentamente, num projeto similar ao de Santiago. Se lá contou a história do mordomo da poderosa família Moreira Salles, na mansão do Jardim Botânico – transformada no Instituto Moreira Salles -, João inspira-se agora na figura de sua mãe. João é aquele talento imenso que todo mundo reconhece, mas, ao cinema, tem preferido a edição da revista Piauí. Melhor para Maria Augusta, que vai ampliando seu espaço.

Futuro Junho é um filme de personagens. A diretora acompanha com sua câmera quatro paulistanos no quadro das manifestações que paralisavam a cidade, em junho de 2014, na pré-Copa. Um é motoboy, outro trabalha numa montadora, o terceiro é sindicalista e o quarto atua no mercado financeiro. Não vai nisso nenhuma ordem, mas os quatro pertencem a diferentes segmentos sociais. Em filmes anteriores, como os da trilogia Justiça, Juízo e Morro dos Prazeres, Maria Augusta já discutiu o funcionamento do Judiciário no País.

Agora, e talvez de forma até mais ambiciosa, ela está querendo mostrar (e refletir sobre) o funcionamento da própria sociedade como um todo. Quem acompanha seu trabalho sabe que a diretora tem uma ligação forte com a Holanda, mas o que lhe interessa é mesmo o Brasil.

Existem os protestos, as palavras de ordem. O protesto segue numa direção, o personagem passa de carro no sentido contrário, mas isso pode não configurar a metáfora visual que você está pensando. Os personagens, afinal, são todos trabalhadores. E a riqueza do filme consiste nesse olhar complexo que a diretora lança sobre cada um deles, e ao embaralhar as quatro trajetórias. Nenhum é definido só pelo que faz. Maria Augusta filma seus eleitos no espaço público e no privado. Na rua, no trabalho, em casa. Sem entrevistas nem narração, cada um deles, e todos, representam uma súmula do processo econômico e social que o País vivia na época.

O sindicalista que atuou na organização da greve dos metroviários tem de lidar com o aparelho repressivo da Polícia Militar de São Paulo. A paralisação é rechaçada pela Justiça e pela tropa de choque. Sem nenhum comício, Maria Augusta propõe uma visão dura do Governo do Estado. O motoboy busca assistência para o filho doente e só recebe não. Desespera-se. Não existem médicos? Não existem, naquele momento, na especialidade que o garoto necessita. O montador (da fábrica de carros) repete sempre a mesma função e, ao redor, o quadro se agrava. O analista financeiro reflete sobre o Brasil de 2014. Expõe o temor do mercado face ao possível fracasso da Copa. Na verdade, e com clareza, ele aponta os fatores estruturais que estão na origem da crise de 2015. O título, de alguma forma, vem dele, ou do meio em que se insere. É um jargão dos corretores da bolsa de valores que negociam contratos de dólares para os meses seguintes.

Tentar entender e explicar o País a partir de quatro personagens parece inconsistente, mas parece só enquanto você le esse texto. Na tela, tudo se articula e faz sentido graças à (grande) arte da diretora. Essa vontade de abraçar o Brasil também está no belo documentário de Victor Lopes. Como ele disse ao apresentar seu filme no Rio, se tivesse feito Betinho – A Esperança Equilibrista há apenas alguns anos, o filme seria uma bela homenagem a um brasileiro que sempre fez diferença. Hoje, a singularidade do momento brasileiro, a crise não só financeira mas institucional que o País está vivendo, conferiu ao filme uma urgência – e outra dimensão. Betinho é sobre a defesa da democracia brasileira, que todos invocam. A esperança nunca foi tão equilibrista.

Hebert de Souza, que o Brasil conheceu como “Betinho”, virou, como “irmão do Henfil”, um símbolo da luta pela anistia, nos duros tempos do regime militar. O próprio título do filme pega carona na música de Aldir Blanc e João Bosco, que foi o hino daquele movimento.

Hemofílico, Betinho contraiu o vírus da aids e cobrou uma política pública sobre os bancos de sangue e o combate à doença. Concebeu e dedicou-se ao Projeto Ação da Cidadania Contra a Fome e lutou em defesa da ética na política. Quando errou, aceitando dinheiro do bicho para atividades assistenciais de sua ONG, assumiu publicamente e fez sua mea culpa. Betinho morreu em 1997. Não viu todo esse turbilhão que hoje ameaça, como um buraco negro, o Brasil.

O filme não é só um tributo a um grande brasileiro. Nas entrelinhas, o tempo todo, o que se discute é a ação cidadã. O que estamos fazendo, cada um de nós e todos, para que se tenha, realmente, o Brasil melhor, pátria de todos? Betinho, o filme, é emotivo onde Futuro Junho é rigoroso, mas ambos são documentários que comprovam a vitalidade e diversidade do cinema brasileiro, e não só do gênero. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Posso ajudar?