Às 12h46 dessa quinta-feira, 12, a pintora Tomie Ohtake já não via mais o amarelo do sol tropical que a fez permanecer no Brasil ao desembarcar no porto de Santos, em 1936, vinda do Japão para visitar o irmão rebelde Matsutaro. Um choque séptico causado por uma broncopneumonia interrompeu sua existência de 101 anos, completados em novembro último, na UTI do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde sofreu uma parada cardíaca por aspirar líquido gástrico. Desde terça-feira, 10, Tomie respirava por aparelhos. Segundo Ricardo Ohtake, seu filho e diretor do instituto que leva o nome da mãe, seu quadro médico vinha se agravando nos últimos meses. Lúcida até o fim, a pintora, que tinha uma vida social intensa e adorava ir a exposições e concertos, tinha problemas de audição e já pintava com dificuldade.
Com muito esforço e a ajuda de um assistente, preparou a derradeira exposição, aberta em outubro passado, na filial carioca da galeria Nara Roesler, sua marchande desde 1986. Eram 10 telas monocromáticas de cores primárias, que seriam classificadas de “matéricas” na época do neoexpressionismo, embora escapem a qualquer classificação – Tomie era resistente a movimentos e grupos, embora seu apego ao abstracionismo geométrico tenha motivado um flerte com os concretos paulistanos nos anos 1960, quando sua pintura começou a ser reconhecida por críticos importantes, entre eles Mario Pedrosa. Ela ficou tão amiga do poeta concreto Haroldo de Campos que assinaria com ele um álbum de gravuras nos anos 1990, hoje raro.
Tomie era uma artista de poucas palavras, de uma incômoda independência artística e ideológica num país onde as pessoas andam em bando. Até por sua natureza introspectiva, sua condição de imigrante e a pouca fluência no português, Tomie era reservada. Só entre amigos conseguia expor com relativa liberdade suas ideias e projetos. Tive de esperar até ela completar 100 anos, por exemplo, para ver sua primeira pintura, uma natureza-morta com flores, de 1952, que Tomie, timidamente, aceitou mostrar e segurar na foto que abre esta página. A tela escapou de uma enchente na casa em que morava com os filhos Ruy e Ricardo, na Mooca, onde começou a pintar.
Pelos dois futuros arquitetos ela foi capaz de sacrificar sua vocação até os 39 anos, quando então, já com os filhos crescidos, resolveu se dedicar à pintura. Criada dentro das tradições japonesas, a família sempre esteve em primeiro lugar, especialmente para quem teve um pai rígido, que a impediu de pintar, e um marido, Ushio, que não era exatamente liberal. Nascida em Kyoto em 21 de novembro de 1913, Tomie veio visitar um dos quatro irmãos no Brasil quando tinha 23 anos. Não conseguiu voltar por causa da guerra sino-japonesa, mas também porque foi atraída pelo amarelo intenso do sol que competia com o azul claro do porto de Santos.
Suas primeiras pinturas, aliás, tentam captar o contraste cromático entre arquitetura e natureza tropical. São paisagens produzidas sob a supervisão de seu único professor, Keisuke Sugano, que se achava de passagem pelo Brasil, e orientação de amigos pintores ligados ao grupo Seibi (Tomoo Handa e outros, inclusive o abstracionista Manabu Mabe). Foi durante essa primeira fase figurativa que fez suas primeiras exposições, a primeira relevante em 1957, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Nos anos 1960, talvez pela proximidade com artistas abstratos, ela encontrou o próprio caminho expressivo sem enveredar pelo informalismo de Mabe. Em plena ebulição do conceitualismo, ela, que sempre se mostrou avessa à supremacia do racional na arte, fez uma experiência radical, vendando os olhos e produzindo uma série de “pinturas cegas”. Participou, em 1961, pela primeira vez, da Bienal de São Paulo, evento ao qual voltou outras sete vezes. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.