Variedades

Burlan filma a tragédia de sua família

Cristiano Burlan não se esquece de um texto publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo em 2013, quando mostrava no É Tudo Verdade o longa Mataram Meu Irmão. Era o ano de Santiago, de João Moreira Salles, e o título da matéria era – O Filho do Banqueiro e o Filho do Pedreiro. Dois documentários confessionais, na primeira pessoa mesmo que um revelasse o mundo pelos olhos do mordomo da família Moreira Salles e o outro mostrasse a violência da periferia e a forma como o diretor, segundo o título, perdia o irmão. A família parece perseguida por uma sina. Estreou nesta quinta, 14, outro documentário de Burlan. Elegia de Um Crime é sobre o assassinato da mãe do diretor. Mataram meu irmão, minha mãe, meu outro irmão está preso. De onde, em face de tanta adversidade, Burlan tira energia para criar? “É uma forma de enfrentar os demônios. Senão, eles me vencem”, confessa.

Teatro, cinema. Seu nome é arte. Tornou-se documentarista respeitado. Prepara-se para rodar sua ficção. Um filme de amor. De amor? Elegia de Um Crime é, até certo ponto, a crônica de uma morte anunciada. Familiares advertiam a mãe de Burlan que ela se arriscava ao permanecer com aquele homem ciumento, e violento. Era amor – da parte dela? Da dele talvez fosse muito mais um sentimento de posse, ainda mais que a vítima era uma mulher bela. Todos são unânimes – a beleza não a ajudou na vida. Burlan reflete – “O feminicídio está na base desse relato, mas não é o meu tema. Acho que seria um tanto oportunista. Meu tema, e eu discuto isso, é a imagem de minha mãe. Numa cena, a imagem que aparece dela é borrada, e é assim que eu a sinto, muito mais que vejo. É como se sua imagem estivesse se dissipando no meu imaginário, e eu tenha feito o filme para preservá-la.”

Mataram Meu Irmão, Elegia de Um Crime. A morte ronda o cinema de Cristiano Burlan, e não apenas nos filmes que relatam a tragédia de sua família. Um dos grandes filmes do ano passado foi dele – Início do Fim, com Jean-Claude Bernardet e Helena Ignez. Ele entra na seara de Albert Camus, que considerava o suicídio o único grande problema moral, e propõe a Helena um duplo suicídio. Realidade – a doença de Bernardet – e ficção misturam-se. A vida vem, por meio de uma dança do mestre do butô, Kazuo Ohno. Há anos que Burlan segue Bernardet com sua câmera. Há um pacto entre eles de que o filme só poderá ser montado e mostrado após a morte do ator, crítico e escritor. E Burlan – “Bernardet brinca comigo dizendo que eu terei de morrer antes para que ele possa recuperar o controle do filme sobre sua vida.” A morte – o crime virou reportagem de TV, e o diretor vai atrás da repórter. Na verdade, por intermédio dela, tenta chegar ao assassino, que está foragido e que há suspeita de que tenha matado outras duas mulheres.

Falando diretamente para a câmera, Burlan confessa que aquela reportagem foi, por muito tempo, seu tormento. A mãe estrangulada – o horror, o horror. Ele conta – “Se eu mostrasse as coisas como são, como foram, o filme seria insuportável.” A irmã é uma de suas personagens. Eles visitam a casa de periferia, num bairro pobre, onde ocorreu o crime. A irmã revela um outro viés dessa mãe que começa a desaparecer na cabeça do cineasta. Existem muitas casas, prédios em ruínas. Nesse universo em destruição, a mãe construiu seu jardim, e a irmã mostra a Cristiano a roseira. Dependendo da sensibilidade de quem vê, é belo, é pungente – como o abraço no irmão que admite seus erros do passado, que sabe que decepcionou a mãe e agora a homenageia com uma música. O diretor, mais uma vez, reflete – se o pai e o irmão estivessem vivos, teriam vingado a mãe. Sua arma é o cinema. Ele só pode filmar, e perpetuá-la em seu filme. O filme do pedreiro conseguiu, de novo. Mais um grande para se inscrever entre os melhores do ano.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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