Mundo das Palavras

Cacá e o Herói da Paulista

Não há uma única gota de sangue na imagem que mostra o sofrimento humano mais incômodo de se ver, produzida no Brasil, nos últimos 50 anos. 
 
Nela, aparece o menino Cacá, Carlos Alexandre Azevedo. Triste e desanimado, nos braços de sua mãe, Darcy. Ele se mostra indiferente perto da mesa preparada para a festa dos seus três anos de idade. Seu corpinho arriado, está colado ao seio direito de Darcy. A mãe olha enviesado para baixo mas parece voltar-se para dentro de si mesma, diante da evidente  falta de ânimo em Cacá. Embora, na mesinha da festa, haja bolo confeitado e ornamentado com o cavalinho negro e sua carroça, brigadeiros, pratinhos cheios de guloseimas. 
 
A composição desta imagem, ocupada pela silenciosa rede de observação mútua, se completa com Dermi, o pai, cujos olhos, ansiosos, se fixam na expressão facial de Darcy. 
 
Meio camuflado, nela, há ainda o contraste criado pelo retrato na parede. O rosto viçoso de Darcy na parede difere do semblante sofrido dela naquele aniversário. 
 
Estes sinais sutis só foram decodificados quarenta anos depois. O pai revelou o “roubo de alma” de Cacá, tragédia definida assim porque Dermi é um católico praticante, da linha de Leonardo Boff, o teólogo para quem Deus é “entusiasmo”. A palavra concentra uma expressão grega que significa “Deus dentro de si”. De acordo com a fé de Dermi, portanto, o entusiasmo, Deus, a alma, foram roubados de Cacá, aos um ano e oito meses de idade. 
 
Em 1974, Dermi e Darcy foram presos, acusados pela equipe do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, de protegerem brasileiros caçados pela Ditadura, numa ação política apoiada pelo arcebispo Dom Paulo Arns. No DOPS, para agravar o sofrimento do casal com as tortura físicas, Cacá foi esbofeteado com violência a ponto de seus lábios sangrarem, e, seu pequeno corpo recebeu descargas elétricas feitas com fios desencapados. Ao ser devolvido exangue à sua avó, Cacá foi atirado no meio de uma sala, batendo fortemente com a cabeça no chão.  
 
Durantes três décadas, Cacá se manteve sem “entusiasmo”. Isolado e angustiado. Por fim, ele se matou. “Meu coração sangra”, escreveu, então, Dermi.
 
Hoje, um policial da equipe de Fleury continua vivo: Carlos Alberto Augusto, o truculento “Carlinhos Metralha”. No mês passado, ele discursou numa passeata pela Avenida Paulista. Foi apresentado como “herói nacional do combate aos comunistas”.
 

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