O cantor Caetano Veloso aliviou o coração dos estudantes que realizaram a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no último domingo, 5. Em um vídeo publicado por Paula Lavigne na segunda, 6, o músico apareceu, confuso, tentando responder a uma questão que perguntava sobre a relação entre duas de suas músicas.
"Quando eu li, achei que são todas", respondeu o músico ao ser questionado pela mulher sobre as alternativas. A pergunta envolvia as obras <i>Alegria, Alegria</i>, de 1968, e <i>Anjos Tronchos</i>, de 2021, e questionava o que as letras tinham em comum, "embora oriundas de momentos históricos diferentes".
Caetano considera todas as opções, mas termina na dúvida entre a B e a D. Ao final, sugerido por Paula Lavigne, ele escolhe a alternativa B, que apareceu como correta na maioria dos gabaritos extraoficiais, mas reafirma: "a B e a D são, aparentemente, as mais apuradas, assim".
O gabarito oficial do Enem será disponibilizado no dia 24 de novembro, segundo o calendário do Inep.
Mas, afinal, o cantor errou na resposta? E será que é possível, mesmo, que a questão tenha duas alternativas corretas? O <b>Estadão</b> procurou especialistas para avaliar a questão e dar um veredito sobre a escolha de Caetano. Um spoiler? O "segredo" não está nas letras, mas no enunciado da pergunta e nos contextos históricos.
<b>Victor Valente, professor de língua portuguesa e coordenador pedagógico da Lítera Vestibulares</b>
Victor Valente elogia a pergunta com as letras do cantor, que, para ele, "força o leitor a perceber pontos de contato que talvez não seriam facilmente percebidos". Além disso, o professor avalia que apresentar a obra de um músico como Caetano a gerações mais jovens é "sempre um ponto a ser elogiado".
Ele, porém, discorda do artista ao afirmar que não é possível que duas alternativas sejam corretas e fixa a resposta na opção B. Conforme o professor, para responder corretamente, é preciso focar não necessariamente nas letras, mas sim no enunciado.
"É fundamental se atentar ao comando colocado pelo enunciado, que pede o ponto comum entre as duas, ou seja, não basta estar presente em apenas uma delas", comenta. A pergunta, para Victor, pode ser considerada de nível mediano ou difícil e algumas respostas, realmente, exploram elementos presentes em uma ou outra letra. "Certamente, confundiu bastante gente", diz.
O professor diz que, por ser o autor, Caetano sabe as intenções das letras mais do que ninguém. A partir do momento em que uma obra chega ao mundo, porém, ela se abre a um "leque de leituras e releituras, muitas vezes bem enriquecedoras da obra original. "Aliás, quanto mais rica é a obra, mais interessantes podem ser essas contribuições – e não é esse, justamente, o papel de um bom crítico?"
<b>Valdir Mengardo, professor de Cenários da Cultura Popular na PUC-SP</b>
Valdir Mengardo defende e concorda com Caetano sobre as inúmeras possibilidades de resposta na pergunta. "O examinador está fazendo uma abordagem pessoal, uma interpretação dele sobre o Caetano. É natural que o Caetano ache que a pergunta tem várias respostas", comenta.
Para ele, a questão, que abordou, essencialmente, o elemento linguístico, mas deveria ter apresentado uma contextualização política e histórica. Se tivesse que escolher entre as respostas, o professor também ficaria entre a B e a D.
Valdir relembra que, no caso de <i>Alegria, Alegria</i>, o trecho exposto na prova também gerou "polêmicas" e diversas interpretações na época do lançamento da música. O verso "O sol nas bancas de revista", por exemplo, passou a ser relacionado com o lançamento do jornal <i>O Sol</i>, no Rio de Janeiro, que influenciou publicações como <i>O Pasquim</i>.
A publicação, porém, foi lançada meses depois da música. "Não há relação, a menos que Caetano estivesse envolvido na produção da revista, o que não é impossível, já que o Chico Buarque estava", diz.
Segundo o professor, porém, a partir do momento em que o autor lança uma obra, ele deve levar em consideração as inúmeras construções de interpretações, incluindo as dele mesmo. "O autor não deve ser só espectador. Tem que ler e reler, como Gilberto Gil, que fez uma releitura de <i>Aquele Abraço</i>", exemplifica.
<b>Luciane Bernardi de Souza, professora de língua portuguesa do Cursinho da Poli</b>
Luciane Bernardi considera que "não há nenhuma possibilidade de todas as alternativas estarem corretas". Para responder, é preciso relacionar o tempo histórico das duas canções e ir além do sentido denotativo das palavras das músicas.
"Em <i>Alegria, Alegria</i>, a notícia tem o ritmo lento das informações que chegam através das revistas. Em <i>Anjos Tronchos</i>, a informação é rápida e se prolifera através das telas – não são apenas cores – e dos algoritmos", explica ela, que também afirma que a resposta correta é a B. Segundo a professora, a questão tem um nível médio.
Segundo Luciane, Caetano não pode ser considerado "dono" da interpretação da obra, que pode ter inúmeros sentidos. "Uma leitura interpretativa não poderia ficar reduzida à perspectiva do autor, que não controla as experiências e vivências de cada leitor e as potencialidades de significação", diz.
<b>Diogo Mendes, professor de linguagens do Cursinho Descomplica</b>
Diogo Mendes levanta a possibilidade de, tanto Caetano quanto alguns estudantes que também consideraram mais de uma resposta, terem considerado as letras de ambas as canções integralmente, o que pode induzir ao erro. Como exemplo, ele cita a alternativa E, já que, em outro momento, <i>Alegria, Alegria</i> faz referência a Claudia Cardinale e Brigitte Bardot, o que poderia se relacionar ao caráter apelativo das notícias da época.
Segundo o professor, porém, não há outra possibilidade além da B. A chave está, justamente, nos contextos históricos distintos. Ele explica que, em <i>Alegria, Alegria</i>, o eu lírico manifesta o desejo da liberdade de expressão, enquanto, em <i>Anjos Tronchos</i>, ele lamenta as manipulações exercidas pela tecnologia sobre as individualidades.
Ainda conforme Diogo, a influência da tecnologia na primeira música está em "bancas de revistas", o que levaria à resposta correta. A "profusão de informações", em <i>Alegria, Alegria</i>, está em "Quem lê tanta notícia" e, em <i>Anjos Tronchos</i>, em "Neurônios meus ganharam novo outro ritmo / E mais, e mais, e mais, e mais".
O professor defende o conceito de "morte do autor" após o lançamento de uma obra e as inúmeras interpretações que ela pode ganhar. Em provas como o Enem, porém, nem a subjetividade de Caetano e nem de quem faz a questão deve ser levada em consideração, segundo ele.
"É crucial, para um bom entendimento da questão, priorizarmos o ponto de vista da banca elaboradora da prova, geralmente apresentado no enunciado e nas alternativas propostos", diz. "Desta forma, por meio de elementos contidos no texto, será possível chegar coletivamente a uma resposta objetiva e não subjetiva, interpretar e não extrapolar."
*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais