Musa da dor de cotovelo, deusa da noite, rainha da fossa, ícone do samba-canção. De trajetória artística tão diversificada quanto os limites que ultrapassou em nome da paixão e as gravadoras pelas quais passou, a densa e intensa Maysa (1936-1977) foi além desses predicados que viraram clichês. Ela, que duvidava da existência do amor em paz, além do bom português, deu bom dia, boa tarde e boa noite à tristeza em outros idiomas. Gravou álbuns e canções avulsas lançadas em compactos em países como Estados Unidos, França, Espanha, Argentina, Itália.
Cantou em inglês, francês, espanhol, turco, italiano, às vezes misturando a língua pátria com outras sem perder a métrica e o sentido na tradução.
Grande parte desse material nunca foi editada no Brasil em vinil e também permanecia inédita em CD. Agora, o selo Discobertas reúne uma penca dessas raridades – além de algumas incluídas antes em coletâneas nacionais – na caixa Maysa Internacional, com cinco CDs, que inclui os álbuns The Sound of Love (1959) e Maysa Sings Songs Before Dawn (1961) e três compilações, com faixas gravadas em estúdio e ao vivo, lançadas em compactos ou LPs coletivos, como trilhas de novelas (Bravo!, Bandeira 2), ou exclusivas de festivais da canção e outros projetos para o mercado internacional.
Na imprescindível biografia Maysa – Só Numa Multidão de Amores, Lira Neto observa que garimpar todos os trabalhos lançados por ela “pelo mundo afora é uma tarefa sujeita a inevitáveis lacunas”. Aqui estão suas pepitas muito bem peneiradas, finalmente ao alcance do público brasileiro em grande escala, com muito boa qualidade de áudio e reproduções das capas originais. Segundo o produtor Marcelo Fróes, idealizador do projeto, “o processo foi tranquilo” e apenas alguns singles europeus, dos quais não havia mais os tapes originais, foram copiados dos discos de vinil.
O primeiro álbum internacional da dona de “olhos de oceanos não-pacíficos”, como distinguiu o poeta Manuel Bandeira, é uma reedição de Convite para Ouvir Maysa nº 2 (1958) e reúne canções que se tornaram clássicas de seu repertório – como Meu Mundo Caiu (dela), Bom Dia, Tristeza (Vinicius de Moraes/Adoniran Barbosa), Bouquet de Izabel (Sergio Ricardo) e Por Causa de Você (Antonio Carlos Jobim/Dolores Duran).
Standards
Os demais CDs da caixa têm registros raros feitos entre 1961 e 1976. Songs Before Dawn (Columbia) foi inteiro gravado para o mercado norte-americano com orquestra dirigida pelo maestro Jack Pleis e só saiu em CD no Japão em 2012. O repertório, que ela canta com propriedade e a melancolia habitual, reúne standards da canção americana, francesa, latino-americana (entre elas, You Better Go Now, Ne Me Quitte Pas, Autumn Leaves e La Barca) e A Noite do Meu Bem (Dolores Duran). Tanto a belíssima capa como a ordem das canções foram modificadas nas edições argentina, peruana e uruguaia do disco.
Nas três compilações, outros clássicos ressurgem em versões diferentes, além de curiosidades como Vai Via Malinconia (Sergio Bardotti/Ennio Morricone), da trilha do filme italiano Ad Ogni Costo, Palida Ausencia (Luis Eduardo Aute), um dueto com Raul Cortez na versão dela para Parole, Parole (Chioso/Del Re-Ferrio) e Atento, Alerta (Egberto Gismonti/Paulo Sergio Valle), todas lançadas em compactos.
Roberto Menescal disse certa vez que, se Maysa – intérprete de algumas canções dele e Ronaldo Bôscoli no álbum Barquinho, de 1961 – não tivesse se aproximado deles, “a bossa nova demoraria mais alguns anos para acontecer”. Portanto, ela já perseguia a modernidade, a escapar do rótulo de cantora fossenta, desde aquele período e se reergueu na música como nos dramas de amor pessoais, por outras pautas nas décadas de 1960 e 70.
Chegou a ponto de trair radicalmente seu tipo inesquecível ao corresponder à piscada de olho de Carlos Imperial, quando aderiu à pilantragem e gravou uma grande bobagem de autoria dele com três parceiros, a rumba-rock San Juanito, que tinha até a voz distorcida a soar como um grasnado de pato no final. Enfim, foi só uma brincadeira, que não compromete seu legado, do qual essa caixa da Discobertas (com colaboração do “maysófilo” Tiago Silva Marques) permite destacar a diversidade de sua linguagem musical. Bravo! As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.