Variedades

Carlos Uchôa abre hoje mostra com fotos e telas sobre a transfiguração

Na mesa do ateliê do monge pintor Carlos Eduardo Uchôa repousa um pequeno volume de Jean-Jacques Leloup, A Teologia Mística de Dionísio, o Areopagita, em que o estudioso francês examina o tratado de um misterioso autor – provavelmente ativo no século 5.º da nossa era – que refletiu sobre a razão de Deus parecer velado às suas criaturas. Obviamente, essa pergunta permanece sem resposta desde Dionísio, uma vez que seria preciso transumanar para atingir o inominável. A saída, segundo Dionísio, é unir-se ao inefável. Uchôa a descobriu há exatamente 20 anos, quando entrou na clausura do Mosteiro de São Bento. Hoje diretor do Colégio São Bento e reitor da faculdade mantida pelo mosteiro, o pintor, filho de Carlos Eduardo Uchôa Fagundes, vice-presidente da Fiesp, usa a pintura como veículo nessa experiência com o transcendente.

Nesta terça, 26, o monge beneditino abre sua exposição Infinito Olhar, que tem como curadora Daisy Peccinini, na Galeria Berenice Arvani. A mostra reúne pinturas recentes e fotografias do artista, que são provas concretas de uma manifestação teofânica, tanto como os filmes de Tarkovski ou as composições de Arvo Pärt. Uchôa, que expõe desde os anos 1980, quando a onda neoexpressionista chegou ao Brasil, faz da mostra um tratado visual de rara erudição e sensibilidade, mantendo cautelosa distância da figura. As pinturas de sua série H não evocam a paisagem circundante nem objetos reconhecíveis. Verticalizadas, elas envolvem o espectador e limitam seu olhar como os zips – as finas linhas verticais – do expressionista abstrato norte-americano Barnett Newman (1905-1970).

Também como Newman, que pintou uma série sobre as estações da cruz, Uchôa quer transmitir a experiência mística do ato de pintar a esse espectador. Naturalmente, não se pode acusar Newman de ter feito propaganda do cristianismo, até mesmo porque ele passou a vida toda afirmando sua condição de judeu e sua liberdade estética, capaz de traduzir uma radical experiência subjetiva. Além do mais, não há razão para suspeitar da arte como experiência mística. Se a linha vertical de Newman, como observou Thomas B. Hess, representa um ato de divisão radical, como Deus separando a luz primordial das trevas, Newman repete o gesto primal nessa faixa que desce ao mundo terreno.

Uchôa usa duas linhas verticais e uma horizontal nessa série que forma a letra H, como uma janela para um mundo transcendental. Pode-se pensar na transgressora perspectiva inversa do teólogo Floriênski (1882-1937), que mantém uma relação antagônica com a perspectiva renascentista e despreza a representação objetiva, assim como na teoria do pier and ocean de Mondrian – em que a linha vertical representa o cais seguro contra a expansão da linha horizontal, o oceano, incontrolável. “De fato, existe uma certa ambivalência entre o gesto que se abre nessas pinturas, que bem poderia ser um gesto expressionista, cheio de dramaticidade”, admite o pintor. Ele, curiosamente, fez no passado uma série de trabalhos verticais chamada Cais, lidando com a questão do equilíbrio instável do ser diante do descontrole, do caótico. “A borda, nos atuais trabalhos, me obriga a pensar nesse espaço de abismo”, conclui.

Trabalhando com o branco, o azul e o cinza, Uchôa lida com questões espirituais em superfícies que se transfiguram, tanto nas pinturas como nas fotos – essas ligadas de forma mais explícita à paisagem reconhecível (praias, piscinas). “É a mesma operação, tanto na tela como na fotografia”, diz. Em busca de algo que está além do próprio mundo, na imaterialidade, ele se dedicou ao estudo dos grandes pintores contemporâneos, como Rothko – que lidou com o vazio existencial do homem moderno – e Picasso – o cubista que levou ao paroxismo essa fragmentação. Uchôa, para quem não sabe, é um dos grandes especialistas na obra do pintor espanhol. Como ensaísta, ele analisou Picasso em sua tese de doutorado, O Beijo da História (Editora 34), publicada exatamente há 20 anos, quando o pintor virou monge, depois de exercer a carreira de crítico de arte na Folha.

Mas, ao contrário de Picasso, que, em 1901, dominado pela depressão, cedeu à hegemonia monocromática do azul para exprimir esse estado de espírito, Uchôa usa o azul e o branco menos por seu valor simbólico – ambas as cores são associadas à pureza, ao imaculado – e mais por sua intensidade física. A exemplo de Rothko, ele evoca uma dimensão metafísica ao promover a interação do espectador com a tela. Rothko, aliás, renegava sua associação com o abstracionismo, afirmando que a expressão de sentimentos básicos – como o êxtase – era o que lhe interessava na pintura (e comprova isso na série de 14 pinturas de sua capela em Houston, Texas). Não só isso, claro. Rothko, assim como Heidegger, acreditava que nós, humanos, podemos ter a experiência do “nada” – e muitos críticos que estudaram sua pintura dizem, sem ironia, que ela está mesmo próxima disso.

“Não é o nada como privação, mas como contínuo desvelamento”, argumenta Uchôa, que não pinta como missionário, mas para dar seu testemunho de algo que não se mostra de modo direto, mas se mantém velado. Ele encontrou na teoria heideggeriana algo que era intuitivo. Por isso, na hora de pintar, Uchôa, professor de Estética na faculdade da qual é reitor, prefere deixar a razão de lado. Apropriado para quem, seguindo o pensamento de Paul Klee sobre a função da arte, quer tornar visível o invisível.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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