No momento em que se discute a relevância dos desfiles das escolas de samba e se eles pertencem ao campo da arte e da cultura – ou devem ser encarados só como uma festa com forte poder de atração turística, o tal “maior espetáculo da Terra”? -, uma exposição em cartaz no Paço Imperial, no Rio, ajuda na reflexão e formulação de respostas. Bastidores da Criação – Arte Aplicada ao Carnaval reúne figurinos e desenhos de Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira, desenvolvidos para o enredo deste ano, Só Com a ajuda do Santo – sobre a religiosidade do povo brasileiro, com ênfase no catolicismo e na umbanda.
Aos quase 34 anos, artista plástico formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com uma vivência no carnaval desde os 21, ele é o mais jovem carnavalesco da Sapucaí. Estreou como titular no grupo das grandes agremiações do Rio, em 2016, já como campeão, com um desfile sobre Maria Bethânia e sua forte ligação tanto com a Igreja Católica quanto com o candomblé.
Este ano, a Verde-e-Rosa ficou em quarto lugar, mas o esmero dos santos e orixás criados por Vieira não passou despercebido. Agora, eles podem ser contemplados tal qual o são as obras de arte, no detalhe: o hábito carnavalizado de São Francisco de Assis, que vestiu a bateria (no desfile, os cerca de 200 ritmistas ganharam uma “careca” como a da imagem do santo); a roupa da porta-bandeira (Squel Jorgea, mulher de Vieira), ornada com 250 mil pedras e medalhinhas; a das baianas, toda formada por saquinhos de Cosme e Damião; os figurinos de alas alusivas a festas populares. As miniaturas com as roupas reproduzidas viraram objetos de desejo dos visitantes.
O traço do artista estava em 300 figurinos, de 22 alas, e foi antecedido de extensa pesquisa iconográfica, ele conta. “Os carros alegóricos são as imagens que ficam. Quis chamar a atenção para a minúcia”, diz Vieira, hoje considerado uma revelação do carnaval carioca. Isso porque vem desenvolvendo, com criatividade, um estilo que vai na contramão da lógica vigente, de privilégio à tecnologia e à pirotecnia, em prejuízo do apuro plástico e da atenção aos elementos seminais das escolas, e num contexto em que os desfiles compõem um programa da grade da TV Globo (a emissora detém os direitos exclusivos da transmissão).
“Gosto de carnaval com entendimento imediato pelo público, sem necessidade de legenda, sem gigantismo. O menor elemento cênico do meu desfile teve a maior repercussão”, diz, referindo-se à escultura que, de um lado, era um Cristo, de outro, Oxalá.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se encantou com o enredo, idealizado por Vieira na esteira da ode a Bethânia, já em seu anúncio. Filmou os trabalhos do barracão para um minidocumentário em que ele explica seu processo criativo e de construção do desfile, exibido n a exposição. Fotos vão compor uma publicação do órgão, que está fazendo 80 anos em 2017.
“O carnaval cada vez mais é visto como festa, entretenimento, e não como uma manifestação importante da cultura da cidade. Assim, deixa de ser encarado como uma ópera popular, com todos os seus saberes como definiu Fernando Pamplona (carnavalesco lendário que saiu dos quadros do Teatro Municipal do Rio para os desfiles nos anos 1960)”, definiu.
“Sou um militante da cultura popular e do carnaval, faço o carnaval em que acredito. Não há hierarquia entre as artes”, defende o carnavalesco, um dos únicos, entre seus pares, a se opor de forma contundente ao corte de verbas para as escolas pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB), o qual credita à sua crença religiosa (Crivella é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus) e relaciona à crescente desvalorização dos desfiles como manifestação cultural. A medida foi depois anunciada também pelo prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.