Nos últimos meses, Yulia e Vitaly Stepanov tiveram de fugir, pedir a proteção de governos estrangeiros, passaram a ser monitorados por espiões e sofreram ameaças. Algumas das pessoas que eles conheciam morreram misteriosamente. Tudo isso depois de o casal, ela atleta dos 800 metros rasos e ele funcionário da Agência de Controle de doping da Rússia, denunciar o sistema de doping de estado orquestrado pela Rússia.
Suas revelações levaram o mundo a conhecer o esquema criado para garantir medalhas – e prestígio – para a Rússia. A Agência Mundial Antidoping (Wada, na sigla em inglês) abriu investigações que resultaram em diversas punições e na exclusão do atletismo russo dos Jogos. A entidade também havia decidido que, como prêmio, Yulia correria no Rio, sob bandeira neutra.
Mas, semana passada, o COI decidiu afastar Stepanova da competição, alegando que ela já havia sido pega anteriormente em um doping.
Em entrevista exclusiva ao jornal O Estado de S. Paulo via skype, de algum lugar da América do Norte, o casal alerta que atletas dopados estarão competindo no Rio. Para
eles, no COI, impera o interesse econômico e não os valores olímpicos.
Vitaly, em grande parte da conversa, falou em nome do casal, sempre consultando Yulia. Se emocionaram quando a reportagem perguntou sobre ameaças e disseram que “o sistema de doping ainda está em vigor”. Eis os principais trechos da entrevista:
Como receberam a notícia de que o COI os afastaria?
Yulia estava dormindo e eu recebi a ligação do COI. No início, não entendi o que diziam. Só depois entendemos que o que fizeram era nos excluir. Ficamos decepcionados. Mas, no fundo, eu já esperava. Por anos passamos informações a diferentes organismos e o COI não nos procurou. Em seis anos, tivemos duas conversas com eles. Uma de 30 minutos e sem detalhes e outra com a Comissão de Ética. A realidade é que não queriam ouvir nossa história. Não foram amistosos conosco. A mensagem era clara: somos um problema para o COI. Era isso que líamos nas entrelinhas. Eles não querem delatores. O sistema de doping ainda está em vigor.
Por que?
Eles não querem a verdade. Querem mostrar ao mundo que tudo está bem e que tudo deve ser encoberto. Eles preferem esconder qualquer coisa negativa. Problemas significam perda de dinheiro. O COI não está sendo administrado a partir de valores olímpicos. O dinheiro está prevalecendo e, em algum lugar, eles jogaram os valores olímpicos.
Que mensagem eles passam a quem quer delatar sistemas parecidos?
A mensagem é de que o COI não vai apoiar ninguém que delatar doping ou corrupção. Eles temem os delatores, Seria o fim de um sistema inteiro. Ainda que a Wada e a Iaaf comecem a entender que é para o bem do esporte que as pessoas estão trazendo denúncias e a verdade, o COI não tem essa política. O aspecto mais decepcionante é que, no comunicado que o COI emitiu quando decidiu aceitar a Rússia, mentiram sobre o que Yulia disse em seus depoimentos. E o pior é que depois eles a convidam para ir como convidada ao Rio.
Vocês virão?
Não iremos. Yulia já pagou por seus erros no passado e cumpriu a pena por doping. Ela poderia competir. Ela decidiu fazer algo positivo pelo esporte e, em resposta, está sendo punida de novo. Entenderíamos que o COI dissesse que estão adotando uma política de tolerância zero com doping e que não querem mais nenhum russo. Mas, agora, o programa corrupto de doping do estado russo não será punido. Isso não é tolerência zero com doping. É tolerância zero com a ética.
Quando foi a primeira vez que vocês denunciaram o sistema?
Foi há seis anos e meio. Em Vancouver, em 2010. Eu fui até a Wada e disse : nós temos um sério problema na Rússia. Passamos horas e horas de nossas vidas dando provas do sistema. Mas o Comitê Olímpico Internacional nunca se interessou. Temos evidências de corrupção no esporte nobre da Olimpíada. Mas eles nunca quiseram saber.
Como esportista, Yulia tinha a escolha de não se dopar?
Não. Ou você se dopava ou estava fora do time nacional. Quando você é jovem, você sonha em estar na equipe nacional. Mas, em cada etapa do processo, é a corrupção que manda. No nível mais alto, quando você já está na equipe que se prepara para torneios internacionais, eles acobertam seus testes, eles fazem acordos para que você não seja testada. Os acordos sempre se referem a cinco ou seis atletas, em cada evento. São atletas que tomam esteroides pela manhã, antes de competir. E nunca serão testados positivos. Mesmo que você esteja limpo e chegue à final de forma milagrosa, você enfrenta atletas dopados. Portanto, a escolha é: ou você é parte do sistema ou precisa sair.
Mas o que dizem os técnicos e dirigentes?
Eles dizem que todos fazem isso e que não há nada de errado com doping. Desde jovem, eles te dizem: todos fazem e se você quer uma medalha, também precisa fazer. Eles também te dizem: fiquem quietos. Não falem sobre o assunto.
Qual era seu papel na Agência Antidoping da Rússia?
Eu trabalha lá desde sua criação em 2008. Eu era oficial de controle de doping e organizávamos seminários. Mas, nas aulas que eu dava, a única pergunta que eu recebia era: quanto tempo antes de um teste temos de parar de tomar uma certa substância. Eu achava sinceramente no início que estava trabalhando para o bem do esporte. Mas logo entendi que era um tolo. A meta não era lutar contra o doping. Mas ganhar medalhas.
Como vocês avaliam a participação russa no Rio?
Os atletas ainda fazem parte do sistema de doping. Sempre foi o caso dos Jogos Olímpicos. Nunca houve uma Olimpíada limpa e não há motivo para pensar que o Rio será limpo. Infelizmente, atletas dopados estarão competindo.
Vocês não se arrependem de ter revelado tudo isso?
O que contamos é a verdade. Não nos arrependemos.