Sentado na sauna de um condomínio em Higienópolis, bairro nobre do centro de São Paulo, o recenseador Wesley Mendonça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passou quatro horas interfonando para todos os apartamentos para convocar os moradores a responder o questionário do Censo Demográfico de 2022. O local escolhido para o trabalho pode parecer estranho, mas o processo foi produtivo, segundo ele. Mendonça aproveitou o entra e sai do local para coletar as informações de que precisava, enquanto os moradores "relaxavam".
O resultado, porém, tem sido exceção. Até a quinta-feira passada, quando o <b>Estadão</b> acompanhou o trabalho de Mendonça, apenas um terço dos apartamentos havia respondido o questionário. Ao todo, os recenseadores podem ir cinco vezes a um mesmo endereço, em horários diferentes, para tentar levantar as informações.
"Existe uma certa desconfiança sobre qualquer coisa que o poder público faz, mas há também uma falta de conhecimento", disse o recenseador de 24 anos, ressaltando que os questionamentos podem ser feitos em cerca de um minuto.
Só que não era para Mendonça estar ali nesta época do ano. O trabalho de campo do Censo, que já se arrasta por quase seis meses, deveria ter sido feito entre 1.º de agosto e o fim de outubro passado. Mesmo depois desse tempo todo, ainda falta a cobertura de 13,5% dos "setores censitários", divisão operacional do território para organizar as visitas domiciliares. Até agora, o IBGE contou 184,3 milhões de brasileiros, enquanto uma estimativa feita com base em uma prévia do Censo 2022 apontou para uma população total de 207,8 milhões.
<b>Dificuldades</b>
A resistência das pessoas é um obstáculo, mas fica mais restrita às famílias mais ricas, contingente relativamente pequeno em relação ao total da população. Desde que começou a informar sobre a prorrogação do trabalho de campo, o IBGE apontou a dificuldade em contratar recenseadores – que, como em todos os Censos, são temporários – como principal entrave.
A diretoria do IBGE tem culpado o aquecimento do mercado de trabalho, que surpreendeu ao gerar mais empregos ao longo do ano passado do que o inicialmente esperado, pela dificuldade em recrutar recenseadores.
Desde o início do trabalho de campo, reclamações sobre a remuneração baixa e a demora no pagamento fizeram muitos dos profissionais recrutados abandonarem o serviço, além da ameaça de uma greve. O IBGE tem dito que correu para ajustar valores, mas foi insuficiente. Eduardo Rios Neto, presidente do IBGE em 2021 e 2022, lembrou que, como nunca antes, as redes sociais espalharam a insatisfação dos recenseadores, afastando interessados.
Mesmo que o baixo valor da remuneração não tenha sido determinante para afastar os recenseadores, a crônica de cortes no orçamento do Censo é longa. Os técnicos do IBGE orçaram inicialmente a operação censitária em R$ 3,1 bilhões para que ocorresse em 2020. No contexto da transição para o governo Bolsonaro, a verba acabou cortada para R$ 2,3 bilhões, e os questionários foram enxugados. O sindicato dos servidores, o Assibge, avalia que o orçamento inicialmente proposto precisaria ser corrigido pela inflação para R$ 3,7 bilhões.
Os atrasos poderão prejudicar a qualidade dos dados, segundo especialistas ouvidos pelo <b>Estadão</b>/Broadcast. "Você tem de fazer a coleta concentrada em dois meses, mais um mês para o rescaldo. Quanto mais longe da data-base, mais fracas são as informações. Se somar isso a uma rede de recenseadores enfraquecida, com treinamento limitado, as chances de você ter uma base de dados ruim é muito grande. É muito preocupante fazer uma coleta em dezembro e janeiro para uma informação referenciada em julho", explicou Roberto Olinto, outro ex-presidente do IBGE, hoje pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), acrescentando que a pesquisa só está em campo graças ao esforço e à capacidade do corpo técnico.
<b>Ano eleitoral</b>
Outro problema, apontado pelo pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), ligada ao IBGE, foi que o adiamento empurrou o Censo para um conturbado ano eleitoral. "Eu achava que a polarização política iria prejudicar o trabalho dos recenseadores, como de fato ocorreu", afirmou Diniz Alves.
O recenseador Wesley Mendonça viu maior influência da polarização política durante o período de campanha eleitoral. "No começo de setembro, fui fazer a coleta em um prédio onde moradores de uns dois ou três apartamentos falaram que era a pesquisa do Lula . Eu disse que não, e expliquei exatamente aquilo que nos ensinam no treinamento", contou.
Além de ameaçar a qualidade dos dados, os sucessivos atrasos atrapalham a produção de informações socioeconômicas, prejudicando de pesquisas eleitorais às estatísticas conjunturais sobre mercado de trabalho, da alocação correta de quantidade de doses de vacinas para cada ponto do País à divisão de recursos públicos federais repassados a Estados e municípios, por meio dos fundos de participação.
Sem o Censo 2022, as estatísticas nacionais ficam numa espécie de "vácuo", disse Diniz Alves, lembrando que problemas orçamentários já haviam levado o IBGE a cancelar a Contagem Populacional de 2015. Isso aumenta a defasagem em relação ao Censo 2010. "O Brasil mudou muito em termos educacionais, demográficos, de renda, de mercado de trabalho, de filiação religiosa etc. Só o Censo Demográfico é capaz de traçar uma radiografia da realidade nacional", disse o professor da Ence.
Para o recenseador Mendonça, toda a polêmica envolvendo a possibilidade de não conclusão do Censo afeta a imagem do levantamento, inclusive entre os próprios recenseadores. Ele contou que conseguiu convencer colegas desanimados com o andamento do Censo a não desistir de trabalhar no projeto. "Quero que daqui a oito anos, quando a gente for começar o Censo de 2030, que eu, de alguma forma, consiga contribuir para que os trabalhadores possam ter melhores condições."
<b>TRÊS PREGUNTAS PARA…</b>
Simon Schwartzman, presidente do IBGE na primeira gestão Fernando Henrique Cardoso
<b>Os problemas já estavam anunciados quando, em 2019, se cortou o orçamento do Censo 2020?</b>
Claramente. O governo Bolsonaro não deu a menor prioridade para o Censo. Sempre houve dificuldades (orçamentárias) com o IBGE, não foi só no governo Bolsonaro. De qualquer maneira, o Censo 2010 foi feito. Em relação a 2020, claramente, não havia como fazer. Isso apareceu em várias ocasiões e culminou com a decisão do Congresso de cortar o dinheiro (em 2021). Houve uma má vontade do governo, e o Congresso, no fim, acabou cortando, com o beneplácito do governo.
<b>Era preciso investir mais?</b>
A verdade é que, hoje em dia, a tendência é cada vez mais se evitar esses grandes levantamentos. Os países mais desenvolvidos, hoje em dia, tendem a trabalhar com dados agregados, com registros de nascimentos, morte e civis. Tentam evitar grandes levantamentos de campo. O ideal é, na verdade, não fazer o censo. Chegar a um ponto, como chegaram vários países europeus, em que se tem o registro administrativo de toda a população. Aí não precisa do censo.
<b>Dá para garantir a qualidade dos dados após tantos atrasos?</b>
Não sou demógrafo, mas acompanhei um momento na Colômbia, num censo em 2010, quando eles tiveram um problema muito grave. Participei de um grupo de pessoas de fora para avaliar a situação de lá. No caso da Colômbia, o que a gente viu é que se pode sempre fazer uma estimativa, tem muita informação, sempre podemos trabalhar com margens de erro, fazer estudos complementares. Pode-se usar os dados de registro para calibrar a informação. Não dá para apagar este censo e fazer outro. É uma coisa caríssima. Sempre podemos melhorar e complementar a informação. Neste momento, temos de ver o que dá para resgatar (das informações) para chegar aos melhores dados possíveis. E avançar no sentido de poder dispensar essas grandes operações de campo, usando melhor os recursos da internet para que não tenha de fazer de novo um Censo em 2030.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>