O país já suportava a Ditadura Militar havia dois anos, em 1966. Mas Chico, aos 22 anos, ainda não fora levado por três vezes às Delegacias de Ordem Política,como ocorreria nas duas décadas seguintes devido à coragem cívica com que enfrentaria o regime usando apenas seu talento artístico. Nem já tivera de se abrigar na Itália, depois de receber ameaças físicas dos órgãos de repressão. Também não passara, até aquele momento, a ser sufocado pela Censura da Polícia Federal a ponto de se ver forçado a gravar só músicas de outros compositores e a ter de assinar suas composições com nome falso (Julinho de Adelaide).
Por isto Chico podia ser feliz, em 1966. Embora já tivesse preocupações sociais como a que apareceu na canção “Pedro pedreiro”. Afinal, ele estavainiciando aprodução da vasta e valiosa herança que vai deixar à cultura do Brasil. Cerca de 500 músicas já desdobradas em três livros infantis, cinco peças de teatro, cinco filmes, e, cinco romances.
A felicidade delepodia se manifestar claramente no seu perfil psicológico,publicado em dezembro de 1966 pela revista Realidade, sob o título “Chico dá samba”, com fotos de Lew Parrela e Nilson Di Rago.O autor: Roberto Freire. Psiquiatra inovador, mais tarde, pai de uma escola de Psicoterapia, a Somaterapia. Profundo conhecedor da juventude brasileira, a ponto de vir a ser tornar autor da mais densa história de amor juvenil já escrita no Brasil, o romance “Cléo e Daniel”. Para Roberto, analisar o estado psicológico de Chico era um desafio que ele podia enfrentar com segurança. Pois tinha acesso ao ambiente doméstico de Chico e chegara a convivercom ele.
Para elaborar o perfil, Roberto observou-o durante semanas num festival de música, no pequeno apartamento carioca dele, nas ruas, e, no meio deseus amigos. Osdiversos momentos, transcorridos no Rio e em São Paulo, ele narrou cominterpenetração de planos de tempo e lugar,ousadia vista antes só na literatura de vanguarda. E em todos os trechosda sua narrativa, Chico se mostrava feliz, alegre, brincalhão.
Ele podia ser assim. Afinal, não tivera ainda parentes negros constrangidos nos seus prédios.Ele próprio, não fora, até ali, insultado, de madrugada numa rua. Nem sua família recebera mensagens agressivas.
Por tudo isto, ninguém, na época, poderia imaginarChico-já herói da cultura nacional – tenso nos ambientes públicos,amparado por advogados. Aos71 anos de idade.