O ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, afirmou em delação premiada fechada com a Polícia Federal que o ex-presidente se reuniu com a cúpula das Forças Armadas para discutir a possibilidade de uma intervenção militar e, assim, anular o resultado da eleição do ano passado. Segundo o delator, o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier Santos, apoiou a iniciativa.
Cid, segundo revelaram nesta quinta-feira, 21, o portal UOL e o jornal <i>O Globo</i>, disse ter participado da reunião entre Bolsonaro e os militares. O <b>Estadão</b> apurou que o então presidente, no entanto, viu esvaziar sua pretensão de permanecer no Palácio do Planalto pela via do golpe ao ouvir de um militar de alta patente que, se houvesse uma intervenção, ele também teria de deixar o cargo e um novo pleito seria realizado. A advertência, em tom ríspido, foi dada no encontro realizado depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e antes da posse do petista.
Ainda de acordo com relatos colhidos pela reportagem, a reunião a que Cid se referiu em sua delação premiada ocorreu sob atmosfera "pesada", e Bolsonaro ouviu a repreensão, que o abateu e o fez desistir da "estratégia" radical, uma vez que não conseguiria sair "ileso" da ofensiva.
A "munição" para tentar convencer a cúpula das Forças Armadas foi uma "minuta do golpe", que daria suporte jurídico à trama. O documento, segundo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, foi entregue ao então presidente pelo seu assessor internacional Filipe Martins. O ex-chefe do Executivo federal negou ter participado de qualquer conversa sobre tentativa de golpe.
<b>Comandantes</b>
Mauro Cid relatou à PF que apenas o então comandante da Marinha avalizou a proposta. Do grupo, Garnier era o mais alinhado a Bolsonaro. Os chefes das outras Forças não aderiram à iniciativa. Segundo relatos, o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército, repudiou com veemência o movimento. O ex-comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, também não acolheu a ideia. Dissuadido, sem apoio, Bolsonaro silenciou.
O teor da colaboração de Cid causou reação entre militares. Comandante do Exército, o general Tomás Paiva cobrou punição aos envolvidos. Em nota, o Exército informou que não comentaria, pois o caso está sob o escrutínio da Justiça e a Força não dispõe de todos os dados consolidados da investigação. Generais, porém, destacaram que nenhuma ordem ilegal foi cumprida pelas Forças Armadas.
Procurado, Garnier não havia respondido aos contatos da reportagem até a publicação deste texto. A Marinha emitiu nota na qual afirma não ter tido acesso ao conteúdo de delação de Cid e diz que "não se manifesta sobre processos investigatórios em curso no âmbito do Poder Judiciário".
A Força Naval salientou que a instituição tem consciência de sua "missão constitucional e de seu compromisso com a sociedade" e reafirmou pautar "sua conduta pela fiel observância da legislação, valores éticos e transparência". "A Marinha reitera, ainda, que eventuais atos e opiniões individuais não representam o posicionamento oficial da Força."
Em janeiro, o almirante Garnier não participou da passagem de comando da Marinha para seu sucessor, Marcos Sampaio Olsen, indicado por Lula. A ausência do almirante na cerimônia causou mal-estar nas Forças Armadas.
Questionado se os chefes militares tinham a obrigação – o dever de ofício – de denunciar o então presidente da República em razão da trama golpista, o ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, afirmou que as leis e os regulamentos são superiores a eventuais comandantes, que são obrigados a respeitá-los, assim como seus subordinados. "Assim sendo, eventuais ordens ilegais não merecem ser cumpridas. Quem as cumpre se torna conivente."
Ainda segundo Ferolla, os comandantes das Forças não tinham a "obrigação regulamentar" de denunciar o plano de golpe, pois poderiam "ser acusados de insubordinação". "Mas, se a ordem resultar em inquérito e se tornar um delito legal, ao ser questionado, o subordinado é obrigado a dizer o que sabe à autoridade superior. No inquérito tudo deve ser apurado, inclusive eventual coação hierárquica ou funcional."
<b>Minuta</b>
Aos investigadores, Cid afirmou que Bolsonaro recebeu uma minuta de decreto que previa prender adversários e convocar novas eleições do seu então assessor Filipe Martins e levou o documento para os militares. O ex-ajudante de ordens disse ter participado tanto dessa reunião de Bolsonaro com Martins quando do encontro com a cúpula das Forças Armadas.
Uma das suspeitas da PF é a de que essas articulações relatadas por Cid tenham relação com os atos golpistas do 8 de Janeiro. A investigação também busca saber se o documento citado pelo ex-ajudante de ordens é a mesma minuta golpista apreendida na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres dois dias depois dos ataques na Praça dos Três Poderes.
Ontem, a relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos atos golpistas, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), afirmou que vai apresentar requerimentos de convocação e quebra do sigilo telemático do almirante Garnier.
<b>Investigações</b>
Em sua colaboração premiada, Cid falou ainda sobre as suspeitas envolvendo fraudes em certificados de vacina contra a covid-19 – o militar foi preso em maio nesse caso – e sobre o desvio e venda ilegal de presentes recebidos por Bolsonaro na Presidência. Essa investigação também atinge o ex-presidente e militares. A PF pretende realizar diligências para verificar a veracidade dos relatos feitos pelo colaborador.
Mauro Cid foi preso preventivamente em maio, na Operação Venire, suspeito de falsificar cartões de vacinação contra a covid-19. No último dia 9, o militar deixou o Batalhão da Polícia do Exército, em Brasília, após sua delação premiada ser homologada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Em nota, a defesa de Cid afirmou não ter os depoimentos a respeito da reunião de Bolsonaro com a cúpula militar e disse que eles são sigilosos. Procurado, o ex-assessor Filipe Martins não havia se manifestado até a publicação deste texto.
<b> Devemos ao Exército, Marinha e Aeronáutica a manutenção da democracia </b>
O ministro da Defesa, José Múcio, afirmou ontem que uma intervenção militar "não interessou às Forças Armas". Múcio saiu em defesa do Exército, Marinha e Aeronáutica após a revelação de que a delação do de Mauro Cid – ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro – citou uma reunião do ex-presidente com os então comandantes e na qual ele consultou sobre um golpe de Estado.
Segundo a colaboração, o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, teria sido favorável a um plano golpista para convocar novas eleições, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na disputa de outubro do ano passado.
"O golpe não interessou às Forças Armadas. São atitudes isoladas, devemos ao Exército, Marinha e Aeronáutica a manutenção da democracia", afirmou Múcio.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>