Sempre houve uma expressiva participação portuguesa na Mostra. Foi o evento que tornou conhecidos no Brasil artistas do porte de Manoel de Oliveira e João César Monteiro. A 45.ª Mostra apresenta uma retrospectiva da obra de Paulo Rocha. Estiveram em São Paulo, para apresentar seus filmes, dois diretores da nova geração. Carlos Amaral veio dos efeitos especiais. Tem 38 anos, é o autor de Mar Infinito. Samuel Barbosa tem 40, foi assistente de Paulo Rocha e mostra seu documentário sobre o importante diretor.
Conversaram juntos com a reportagem do <b>Estadão</b>. O repórter citou justamente Monteiro e Oliveira. O segundo foi uma presença recorrente na Mostra, acompanhando presencialmente a apresentação de muitos de seus filmes. Eram homens de grande cultura. Amaral: "Ambos pertenciam à elite de Portugal. Eram, realmente, esses grão-senhores de que você fala. Nós viemos da classe média, somos de outra geração. Falando por mim, digo que meu cinema tem outras preocupações. Com Mar Infinito, trabalho com gênero, quis refletir sobre a solidão cósmica. É um filme muito, muito barato, mas, como trabalho com efeitos, creio que consegui fazê-lo com dignidade e modéstia".
<b>OBRA</b>
E Barbosa: "Paulo Rocha morreu em 2012, portanto, há nove anos. Eu tinha 31, na época. Fui assistente dele – e ele próprio sabia do meu projeto de fazer um filme sobre sua vida e seus filmes. Um documentário como o meu tem uma ligação muito forte com a cultura das cinematecas. A (Cinemateca) Portuguesa tem sido uma fortaleza na preservação da memória do cinema português, e mundial.
Possui cópias novas dos filmes do Paulo, e isso ajudou muito. Aqui (em São Paulo) também é possível ver seus filmes mais importantes em cópias restauradas, o que será ótimo". Mas a Cinemateca não guardou apenas os filmes. Conserva um riquíssimo material de arquivo que permite a Barbosa abordar a vida familiar de Rocha – a relação com a mãe, com o irmão.
<b>PLANETAS</b>
Na fantasia de Amaral, a vida na Terra tornou-se impossível e as pessoas migram para outros planetas. O protagonista é deixado para trás. É um homem que lida bem com as máquinas (e a internet). Tem uma espécie de prazer na solidão, até o surgimento da mulher. Ela se chama Eva, não por acaso. Faz as perguntas – sobre o cara, Pedro, e o estado do mundo – que o próprio espectador gostaria de fazer.
E tudo se passa num clima de deserto, como se estivessem debaixo dágua – o mar infinito. Um mundo de restos. Prédios abandonados, o estacionamento vazio, uma piscina comunitária, o restaurante. Toda essa ambientação ganha uma dimensão fantasmagórica graças à luz de néon.
"Tive oportunidade de fazer meu filme graças a Rodrigo Areias, da produtora Bando à Parte", conta Amaral. O nome é, obviamente, uma homenagem a Jean-Luc Godard e a seu longa de 1964. "Ele (Areias) se interessou pelo meu filme e o fizemos, com recursos limitados, mas com total liberdade. É uma característica forte do cinema de autor em Portugal. Ninguém nos pressiona, nem fiz como devemos fazer nossos filmes. O Mar Infinito tem-me servido como cartão de apresentação. O público é seduzido pelo visual, a crítica tem respondido favoravelmente ao estranhamento das transições."
Samuel Barbosa também vem da "usina" de Gustavo Areias, cuja produtora tem sido decisiva para o surgimento de novos realizadores. Seu documentário se chama A Távola de Rocha. "Trilho os caminhos que ele (Paulo Rocha) seguiu para fazer seus filmes." Barbosa foi assistente de Rocha a partir de 2001. Acompanhou-o na sua última década de vida. Ele entrevista atores (Isabel Ruth e Luís Miguel Cintra, também um favorito de Manoel de Oliveira), a escritora Regina Guimarães e um irmão do cineasta, que vive no Brasil. "O Paulo vinha de uma família rica, por parte de pai e mãe. Eram gentes que haviam feito fortuna no Brasil e tinham ligações aqui." Isabel faz uma observação pertinente. "Não há um só beijo em toda a obra do Paulo." Isso não impede que a questão do afeto esteja presente em toda a sua obra.
No Dicionário de Cinema, Jean Tulard cita o que lhe parece a obra-prima de Rocha, A Ilha dos Amores. Diz que o filme é um grande afresco sobre os contatos entre as civilizações. Faz sentido o que Barbosa acrescenta. "Meu filme foi muito bem recebido no Japão, onde a obra do Paulo é conhecida e admirada."
Vale acrescentar que Rocha foi adido cultural em Tóquio. Foi também assistente de Oliveira e de Jean Renoir – em Le Caporal Epinglé, no começo dos anos 1960. Em 1964, já diretor, foi premiado em Locarno com seu primeiro longa, Os Verdes Anos. Com humor, o próprio Rocha considerava esse prêmio essencial para o desenvolvimento de sua carreira. "Mostrou às gentes que eu até seria capaz de ter algum talento", dizia.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>